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Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

O FEITIÇO DO CINEASTA: Spielberg, Os Fabelmans e a magia do cinema

 


Devido a seus polegares opositores, baixo número de pelos, postura ereta e cérebro desenvolvido, o observador comum pode chegar à conclusão de que Steven Spielberg é mais um Homo sapiens entre os 8 bilhões que lotam o planeta Terra. Um antropólogo, biólogo ou artista mais perspicaz, no entanto, poderá identificá-lo como membro da espécie mais comumente envolvida com o cinema: o Homo magus.

O Homo magus se diferencia do seu primo Homo sapiens pela sua paixão insaciável pela arte da ficção, pela forma mais bela e verdadeira de contar mentiras.

Acima de tudo, o Homo magus tem a habilidade de encantar com arte, que em suas mãos, tem o efeito onírico, lúdico e fantástico que a humanidade percebe como magia. E é para essa forma de magia tão natural, tão biológica para Spielberg que ele dedica uma de suas maiores obras: “Os Fabelmans”.

Spielberg utiliza de toda sua maturidade como pessoa e como cineasta para refletir sobre o tópico mais importante para qualquer artista: a relação com sua arte.

Uma autobiografia revela muito sobre como um autor se enxerga e, por isso, “Os Fabelmans” não poderia começar com outra cena que não a primeira ida do jovem Steven ao cinema. É justamente o fascínio pela experiência e pelo fazer do cinema que o caracterizam como indivíduo. Spielberg sem seu cinema, sem sua arte, não seria Spielberg. Atrás das câmeras, no entanto, ele é uma figura quase mística, mágica, mestre de seu próprio microcosmo artístico.

Para Steven Spielberg, ou Sam Fabelman, nome que dá ao personagem que o representa na tela, o cinema vem de maneira natural, tanto pela facilidade e engenhosidade que possui para elaborar seus filmes desde a juventude, quanto pela necessidade quase biológica de tornar o hábito de fazer cinema em algo regular, cotidiano. Distanciar-se do cinema, aprisiona Sam Fabelman, o torna pessimista, cansado. É apenas carregando uma câmera nas mãos que ele se sente senhor do próprio destino, realizado e completo.

O cinema é, sobretudo, uma forma de libertação dos males da realidade e da vida pessoal, como fica claro pelo contraste entre a sétima arte e relação familiar doce mas conturbada da juventude de Spielberg.

Esse fascínio com a liberdade do sofrimento através da arte é extremamente notável em suas obras. Diferente de diretores como Godard ou Kubrick, Spielberg costuma ter uma abordagem narrativa otimista, focada no melhor das pessoas, na superação de grandes sofrimentos, no potencial humano, o que contribuí para a sensação encantadora e apaixonante que seus filmes transmitem.

O fato de Spielberg ter se apaixonado pelo cinema na infância é extremamente visível em sua obra, pois não é incomum ver seus filmes evocarem sentimentos de grandiosidade, inventividade, deslumbramento e inocência tão comuns às crianças e ao cinema americano da década de 50.

Entretanto, é importante reforçar que, esta criança interior tão influente em seus filmes não se traduz em ingenuidade. Do holocausto ao divórcio de seus país, fica claro que o otimismo Spielbergiano é mágico pelo fato de ele estar ciente do sofrimento que existe no mundo, e é exatamente no contraponto entre tragédia e otimismo que surge a magia dos filmes de Spielberg. A magia está na existência de amores inocentes e incondicionais até mesmo nos lugares mais brutos e miseráveis.

A forma como Spielberg retrata o amor nas suas mais variadas formas se traduz pelo significado que ele próprio dá a sua arte. Godard, que abordei em meu último texto, representava o amor dos casais de seus filmes como belos, obsessivos, enlouquecedores e trágicos. Seu amor pelo cinema se deu da mesma forma: ele amou sua arte de maneira tragicamente bela até o fim de sua vida. Spielberg, em contrapartida, tende a representar o amor em seus filmes de forma mais inocente, bela, otimista e deleitosa, e é exatamente dessa maneira que seu amor à sétima arte se traduz. Em “Os Fabelmans”, fica claro que Spielberg ama o cinema de maneira incondicional, mas de forma tão leve e despretensiosa que convence o público a nutrir tanto carinho pelo fazer artístico quanto ele. Spielberg ama o cinema de forma solidária, ele faz questão de tentar transmitir para o público o mesmo amor gratificante sente.

“Os Fabelmans” é por fim, como diversas obras metalinguísticas sobre o amor às artes, um manifesto contra a mediocridade e o comodismo.

Spielberg não poupa esforços para demonstrar que o caminho dos artistas é árduo e doloroso, todavia, ele deixa claro que a chama do cinema é tão incessante e bela que vale a pena arriscar uma ou outra queimadura ao tentar se aquecer.

O caminho dos cineastas e artistas é repleto de sofrimento, mas ele é infinitamente melhor que o dos frustrados e pragmáticos que ou não entendem o valor da arte ou a rejeitam para buscar um falso conforto.

É exatamente desse tipo de amor pela arte: aventureiro, arriscado e ousado de que tanto a indústria cinematográfica quanto o mundo precisam cada vez mais.

Não precisamos de apáticos burocratas calculadores ou de inescrupulosos técnicos extremistas da razão. Precisamos de mais amantes ousados e despretensiosos. Precisamos de mais artistas.

Abaixo aos medíocres, ordinários, pragmáticos e cínicos de todos os tipos.

Vida longa aos artistas, aos loucos e aos apaixonados.

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