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O DEFUNTO DA AVENIDA SÃO JOÃO
Em uma terça-feira, por volta das 10 horas da manhã, foi encontrado um cadáver no meio da avenida São João.
Um corpo deixado no meio da rua normalmente não é episódio digno de nota em São Paulo. O caso é interessante, no entanto, porque os dois policiais que deveriam ensacar o morto não o fizeram porque debatiam a identidade do defunto.
O primeiro afirmava que, de alguma forma, aquele era seu falecido pai, enquanto o outro tinha certeza de que o morto era uma criança.
A confusão soa impossível, mas um dos oficiais tinha toda a convicção do mundo de que aquele corpo era de seu pai, um homem idoso já enterrado há 20 anos, enquanto o outro insistia que a pessoa estirada ali era um garoto de 10, 12 anos.
Ambos os policiais analisavam o cadáver de maneira clara e detalhada. Aquele não poderia ser um mero erro de observação ou uma divergência subjetiva da interpretação dos fatos, os fatos simplesmente eram diferentes e paradoxalmente coexistentes. O corpo era, ao mesmo tempo, o jovem e o velho.
Um homem que passava por ali caiu de joelhos ao ver o cadáver e gritou:
— Meu Deus, mataram a virgem Maria!
Em poucas horas, lojas, escritórios, casas e ruas por toda cidade esvaziaram e multidões marchavam para ver o tal do defunto da São João.
A região ficou abarrotada das mais diferentes pessoas. Até mesmo a aristocracia paulistana, que há tanto tempo havia trocado o centro por seus palacetes periféricos, correu para o meio da bagunça motivada por um fascínio mórbido. Dizem que alguns desses aristocratas já falavam até mesmo em comprar apartamentos que tivessem vista para o falecido.
Era curioso o fato de que, apesar de algumas pessoas observarem por horas a fio, nenhuma delas se atrevia a encostar, um dedo que fosse, no homem ou mulher caído ali. Alguns achavam que a aparência era fruto de uma ilusão que seria quebrada caso o morto fosse tocado. Outros tinham um afeto tão grande pelo indivíduo que enxergavam ali que não se atreviam a tocá-lo. Alguns tinham um nojo genuíno daquele homem asqueroso, e se recusariam a encostar nele mesmo que estivesse vivo.
Lá pela quinta-feira, não havia uma pessoa na cidade que não tivesse dado uma boa olhada no cadáver, mas o interesse mórbido paulistano não parecia diminuir, e a prefeitura não estava nem um pouco interessada em dar descanso àquele coitado.
“A cidade está tendo um carnaval fora de época em termos de receita”
A TV se tornou monotemática: “cientistas explicam o fenômeno”, “médium revela a verdade sobre o cadáver” “governador nomeia o defunto da São João como embaixador da cultura paulista”, “corpo é cotado para participar de reality” “Quem é o corpo na visão dos seus famosos favoritos?”.
As descrições eram múltiplas: uma mulher de 26 anos afirmava que o corpo era de sua irmã, enquanto sua irmã, ainda viva, parecia ter ciúmes do cadáver (que para ela, era com toda certeza a já falecida estrela de cinema Greta Garbo)
Um homem de 45 anos dizia que o cadáver era ele mesmo. Uma mulher que não o conhecia confirmou o relato: usavam até as mesmas roupas. Nesta parte, no entanto, discordavam, para ele, seu sósia usava trajes de detento.
Uma mulher de 86 anos descreveu o corpo como um garoto negro, entre 18 e 20 anos, que havia morrido por nossos pecados.
Um pastor balbuciava na TV mensagens subliminares ligando o aparecimento do morto à necessidade de os fiéis aumentarem suas doações à igreja.
Perguntado sobre o assunto, um poeta respondeu que todos os poemas que havia escrito, e que haveria de escrever, eram intuitivamente sobre aquela mulher de cabelos negros falecida na São João que, mesmo após a morte, mantinha no rosto um semblante intensamente sincero e calmo.
Outro poeta, tão genial quanto, respondeu que nunca escreveria uma rima sequer sobre um indivíduo tão desprezível quanto aquele cadáver.
No partido comunista, alguns diziam que a morta era uma trabalhadora, mártir da revolução. Já outros pensavam se tratar de um grande capitalista, cuja morte profetizava o fim da burguesia. Maria, por sua vez, discordava de seus companheiros, para ela, a mulher caída na São João era sua própria mãe.
Nos partidos de direita nenhuma descrição do corpo foi particularmente interessante.
Um artista consagrado fez um quadro do defunto: pintou um cachorro.
Um taxista se frustrou ao esperar horas na fila para ver um corpo qualquer.
Físicos tentavam entender o fenômeno óptico que resultaria nas divergências visuais.
Médicos procuravam sinais da existência de um vírus alucinógeno na cidade.
Psiquiatras tentavam analisar o impacto que a visão do corpo causava em seus pacientes. Alguns procuravam ligação entre a aparência do cadáver e a psiquê do observador. Para outros, era óbvio que a aparência do defunto era fálica.
Sociólogos se interessaram pelas dinâmicas sociais que surgiram após o fenômeno na avenida São João.
Urbanistas discutiam como aquela movimentação toda subvertia completamente as dinâmicas da cidade de São Paulo.
Em toda a cidade, no entanto, ninguém debatia o porquê de o morto estar morto.
Ao longo de um mês, o defunto da avenida São João virou camiseta, slogan político, símbolo religioso, símbolo da contracultura, tema de música, poesia, livro, filme e revista.
Em meio a esse turbilhão midiático, pouquíssimas pessoas percebiam que o corpo se decompunha de forma absurdamente veloz. Ao fim do segundo mês, o corpo já havia se decomposto a ponto de ser completamente espalhado pelo vento.
No terceiro mês após o aparecimento do cadáver, muitos ainda discutiam o que haviam testemunhado, mas, de forma tão veloz quanto a decomposição, as pessoas deixaram de falar sobre o assunto, a cidade voltou ao status quo, as alterações sociais desapareceram e a mídia encontrou outra fonte de histeria coletiva.
Eu estava fora da cidade quando tudo isso aconteceu.
Nunca tive a oportunidade de ver defunto.
Não tenho como saber se pensaria que em sua vida foi santo ou diabo, mártir ou déspota. Sei, no entanto, que em sua morte, foi um poeta.
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