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JEAN-LUC GODARD ESTÁ MORTO.
Jean-Luc Godard está morto. Morreu por suicídio assistido. O motivo? Estava cansado.
Um ano
antes, no início de 2021, Jean-Luc anunciou que se aposentaria após a conclusão
dos projetos em que trabalhava. Um ano depois, Jean-Luc Godard está aposentado
(e morto).
Nos últimos
anos, a carreira de Godard atingiu o ápice de seu projeto iconoclasta, que no
início consistia na quebra dos padrões de narrativa visual e verbal dos filmes,
e que culminou no abandono final das gorduras da linguagem cinematográfica, a
descoberta da forma mais pura de cinema, e por que não, da arte.
O projeto
final de Godard foi o assassinato da linguagem deixando apenas a arte
cristalizada, intocada pelas limitações comunicativas banais. Isto fica muito
claro na forma como o diretor se expressava até mesmo fora do fazer
cinematográfico, como demonstrado no documentário “Até Sexta, Robinson”, onde
ele se comunica a todo tempo de forma poética e enigmática.
No fim de
sua vida, era impossível distinguir Godard do cinema, do fazer artístico, ele
não podia se distanciar da arte, nem em pensamento, nem em comunicação. Na sua
jornada de descoberta do cinema, Godard amou tanto a sétima arte que se tornou
um com ela, ele efetivamente era cinema. Jean-Luc conseguiu o que queria: A
linguagem está morta. Jean-Luc Godard está morto. O cinema, de alguma forma,
segue vivo.
Antes do
cinema e da linguagem, as obras de Godard trataram da política (como discuti em
outro texto). Antes da política, no entanto, ele falou do amor.
Desde que a
humanidade deixou de utilizar a linguagem apenas para descrições de objetos e
seres materiais, isto é, a partir do momento em que deixamos de utilizar a
comunicação apenas para falar de tigres, mamutes e cavernas, começamos a falar
de amor, e, pela abstração, mutabilidade e complexidade do tema, não o
esgotamos ainda. Falar de amor é, de certa forma, sinal da evolução tanto da
linguagem quanto da espécie, marcando o fascínio da humanidade com a abstração,
com a metafísica. Este fascínio é a grande distinção entre o homem e todos os
outros animais do planeta, é a característica essencial do ser humano. Pensar
sobre amor, tristeza, alegria é o que nos torna humanos.
Ao longo de
milhares de anos, os artistas, filósofos e intelectuais retrataram o amor de
muitas formas. Para uns, o amor é belo, para outros, idealizado e inalcançável,
para alguns, razão de viver, para outros, causa da morte, existem até mesmo
aqueles que o consideram uma mera ficção social. Godard, por sua vez, retrata o
amor como extasiante, quase onírico, mas em um grau que pode levar a loucura, a
ruína. O amor, na obra de Godard é a força motriz de todo ser humano, o
sentimento mais belo que se pode experienciar, mas é também trágico,
enlouquecedor e fadado a terminar. Resta perguntar se o risco vale à pena.
“Acossado”,
seu filme de estreia, é sobre um malandro egoísta que se entrega totalmente
para o amor, e sobre uma garota aparentemente inocente e pura que nega seus
sentimentos em vão.
A trama é
conduzida de tal forma que seu clímax revela um retrato do amor que é irracional,
incontrolável, doce, mas mortífero.
Patricia,
personagem principal do longa, entrega o amado para a morte certa em uma
tentativa de afirmar para si mesma que não o ama, mesmo que a morte dele cause
nela um vazio existencial que prova exatamente o contrário.
Amar em
“Acossado”, é involuntário, irracional e irresistível. É leve e puro, mas pode
levar a ruína, a decepção, ao vazio.
No final da
trama, Patricia percebe que não pode negar seu amor, e que a perda a torna
vazia e infeliz. No entanto, seu amado e talvez até mesmo seus sentimentos por
ela, assim como Jean-Luc Godard, estão mortos.
“Bande à part”,
de 1964, também faz um interessante estudo sobre o amor com seu triângulo
amoroso principal protagonizado por Odile, Arthur e Franz. Aqui, a paixão mais
uma vez leva a irracionalidade, a loucura, ao abandono das certezas, ao
oferecer uma realidade que inicialmente é lúdica e aventureira. Amar vira uma
forma de escapismo do comodismo, da vida estagnada e comum. Contudo, o
escapismo completo, a fuga, mais uma vez leva à tragédia.
Odile fica tão
encantada com as danças em cafés, os beijos no curso de inglês, as conversas no
metrô e as corridas pelo Louvre que se deixa levar pela vontade de seus amantes
a ponto de ajudar na realização de um roubo contra sua própria tia.
Antes do
roubo, a garota decide ficar com Arthur, mesmo que este tenha expectativas
completamente diferentes acerca da relação. Odile quer casar-se, enquanto o
ladrão tem pretensões muito menos sérias.
O roubo, no
entanto, termina de forma trágica, com Odile acreditando ter sido cúmplice do
assassinato da tia e com Arthur sendo baleado pelo próprio tio. A garota agora
foge com Franz, não pelo escapismo inocente de outrora, mas por uma necessidade
real. É questionável no final se a garota realmente ama Franz ou se enxerga
nele apenas uma forma de escapar, literal e metaforicamente, de sua vida.
Neste longa
o amor é realmente apaixonante, belo e divertido, mas também beira a completa
fuga das responsabilidades, do mundo real. O amor de “Bande à part” é tão belo
quanto opioide, tão vivo quanto mortal. Franz e Odile escapam juntos, por amor
ou por necessidade. É incerto.
As únicas
certezas que temos são: suas antigas vidas estão mortas, Arthur está morto, e, 58
anos depois, Jean-Luc Godard, o senhor das alegrias e tristezas destes
personagens, também está morto.
Um ano
depois de “Bande à part” o cineasta lança “Pierrot le fou”, estrelado pelos
dois atores favoritos de Godard: Jean-Paul Belmondo, de “Acossado”, e Anna Karina,
estrela de “Bande à part” e até então sua esposa. “Pierrot le fou” é o
manifesto apoteótico do amor na nouvelle vague. “Pierrot le fou” é
simultaneamente um dos maiores relatos sobre o amor, a loucura, o consumismo
capitalista e o escapismo. “Pierrot le fou” é meu filme favorito, o Magnum
opus do, agora morto, Jean-Luc Godard.
“Pierrot le
fou” é mais uma história dele e dela. Ele é Ferdinand, ela é Marianne. Ele ama
ela. Ela provavelmente não ama ele. Ela levou um tiro. Ele explodiu a própria
cabeça.
Ferdinand,
no início, é um burguês cansado da própria burguesia. A alta sociedade em que
está inserido parece cada vez mais fútil, vazia, assim como seu casamento e
vida familiar: estagnados, frios, monótonos. Por isso, ele decide abandonar
conforto, reputação e certeza para fugir com Marianne, que é selvagem, veloz, viva,
interessante e energética.
Marianne, contudo,
assassinou um homem e está envolvida com uma complicada rede de grupos armados,
fatos que não mudam a decisão Ferdinand que segue apaixonado e devoto à ela,
pois ela é, para ele, símbolo de tudo o que procura: liberdade e metamorfose.
A mulher,
entretanto, não ama Ferdinand. Pierrot, como ela o apelida, acaba por descobrir
que ela é na verdade apaixonada por outro homem. Marianne era a única certeza
para Ferdinand. Ele abriu mão, de bom grado, de tudo o que tinha, de seu
próprio “eu” em busca da única certeza que lhe importava: o amor dela. Quando
ele perde a única razão de viver, a única certeza de sua vida, Pierrot
enlouquece, mata ela, seu amante e em seguida, amarra dinamite na própria
cabeça e se explode.
O amor
libertou Ferdinand mas também o fez escravo, o fez louco. Ele estava disposto a
cometer qualquer loucura por uma única certeza, e quando até esta se esvai, ele
perde seu propósito, sua razão de ser, e não vê alternativa se não o suicídio.
O amor
aqui, é belo, louco, melancólico, libertador, opressivo e mais uma vez mortífero.
Marianne está morta. Pierrot está morto. Jean-Luc Godard está morto.
Na década
de 80, Godard vendeu “Prénom Carmen” como o “Pierrot le fou” daquela década,
uma atualização de seu grande retrato do amor e da loucura para toda uma nova
geração de amantes.
O filme, no
entanto, já mostra sinais do seu crescente desapego com o cinema tradicional. A
trama é similar à do longa da década de 60, porém as diferenças na forma e na
execução, tornam esta obra completamente diferente. “Prénom Carmen” é muito
mais subjetivo e abstrato. “Pierrot” é sobre um homem que larga tudo para ficar
com uma mulher envolvida com crimes que não o ama de verdade, resultando em um
desfecho povoado por loucura e morte. “Carmen” é um filme sobre um homem que
larga tudo para ficar com uma mulher que planeja cometer um grande crime, que
no final das contas não o ama de verdade, o resultado é loucura e matança. Os
dois filmes são completamente diferentes.
Matar
Carmen no final da trama, da mesma forma como fez com Marianne, é mais uma
etapa do projeto de Godard para entender a linguagem e em seguida matá-la.
Hoje, percebemos que ele teve sucesso. Carmen está morta. A linguagem está
morta. Jean-Luc Godard está morto.
Em seguida,
em 1985, Godard dirige “Eu Vos Saúdo, Maria” que trata daquele que é talvez o
casal mais importante do mundo ocidental: José e Maria, mas transportando a
história da anunciação e nascimento do Cristo para a França contemporânea.
Acompanhamos então um Joseph taxista e uma Marie frentista.
O
lançamento do longa na época foi extremamente polêmico, rendendo críticas do
Papa João Paulo II e censura em território brasileiro à mando de José Sarney, o
que, considerando a postura eternamente irreverente de Godard, provavelmente o
agradou. A maior parte da polêmica é devido ao uso da nudez como forte recurso
temático. Nudez esta que não carrega qualquer luxúria, é apenas utilizada para
debater sexualidade, pureza, o papel da mulher e a imagem atribuída ao corpo
feminino.
O filme
segue de maneira bem fiel os elementos principais da narrativa bíblica. Aqui,
contudo, a responsabilidade de ter um filho de Deus é muito mais reforçada.
Marie é inicialmente desacreditada quando diz carregar o messias e, acima de
tudo, precisa passar por todo um processo de ressignificação da própria pessoa,
da própria sexualidade, para carregar tal fardo.
Marie então
sacrifica quem ela é. Tanto ela quanto Joseph passam a enxergar a nudez e o
corpo dela como alheios a qualquer sexualidade e personalidade. Ela se torna
apenas ferramenta do plano divino. A mulher Marie está morta. Sua sexualidade
está morta. Jean-Luc Godard está morto.
Apesar de ele
se utilizar de outras significações, o amor na obra de Godard é sempre
complexo, contraditório, caótico, louco, belo e mortal.
Godard amou
muitas vezes durante sua vida, ele se casou três vezes. O amor de sua vida,
porém, não era uma mulher, era o cinema.
O cinema
foi pra Jean-Luc razão de viver, escapismo, realidade, beleza, tragédia, mas
acima de tudo, verdade. O artista era apaixonado por sua arte de modo quase
insano, de maneira que ela tomou sua própria vida. Não era possível distinguir
Jean-Luc do cinema. Godard é cinema. Cinema é Godard.
Com a
conclusão de sua carreira, de seu projeto vanguardista de descobrimento de toda
uma arte, Jean-Luc concluiu também sua função, seu chamado maior. Sua vida era
cinema, quando este estivesse resolvido, a vida não importaria mais. Assim como
aconteceu com tantos de seus personagens, o amor libertou e escravizou Godard.
E sim, valeu a pena.
Jean-Luc
Godard está morto. O cinema ainda está vivo.
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