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Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

JEAN-LUC GODARD ESTÁ MORTO.


Jean-Luc Godard está morto. Morreu por suicídio assistido. O motivo? Estava cansado.

Um ano antes, no início de 2021, Jean-Luc anunciou que se aposentaria após a conclusão dos projetos em que trabalhava. Um ano depois, Jean-Luc Godard está aposentado (e morto).

Nos últimos anos, a carreira de Godard atingiu o ápice de seu projeto iconoclasta, que no início consistia na quebra dos padrões de narrativa visual e verbal dos filmes, e que culminou no abandono final das gorduras da linguagem cinematográfica, a descoberta da forma mais pura de cinema, e por que não, da arte.

O projeto final de Godard foi o assassinato da linguagem deixando apenas a arte cristalizada, intocada pelas limitações comunicativas banais. Isto fica muito claro na forma como o diretor se expressava até mesmo fora do fazer cinematográfico, como demonstrado no documentário “Até Sexta, Robinson”, onde ele se comunica a todo tempo de forma poética e enigmática.

No fim de sua vida, era impossível distinguir Godard do cinema, do fazer artístico, ele não podia se distanciar da arte, nem em pensamento, nem em comunicação. Na sua jornada de descoberta do cinema, Godard amou tanto a sétima arte que se tornou um com ela, ele efetivamente era cinema. Jean-Luc conseguiu o que queria: A linguagem está morta. Jean-Luc Godard está morto. O cinema, de alguma forma, segue vivo.

Antes do cinema e da linguagem, as obras de Godard trataram da política (como discuti em outro texto). Antes da política, no entanto, ele falou do amor.

Desde que a humanidade deixou de utilizar a linguagem apenas para descrições de objetos e seres materiais, isto é, a partir do momento em que deixamos de utilizar a comunicação apenas para falar de tigres, mamutes e cavernas, começamos a falar de amor, e, pela abstração, mutabilidade e complexidade do tema, não o esgotamos ainda. Falar de amor é, de certa forma, sinal da evolução tanto da linguagem quanto da espécie, marcando o fascínio da humanidade com a abstração, com a metafísica. Este fascínio é a grande distinção entre o homem e todos os outros animais do planeta, é a característica essencial do ser humano. Pensar sobre amor, tristeza, alegria é o que nos torna humanos.

Ao longo de milhares de anos, os artistas, filósofos e intelectuais retrataram o amor de muitas formas. Para uns, o amor é belo, para outros, idealizado e inalcançável, para alguns, razão de viver, para outros, causa da morte, existem até mesmo aqueles que o consideram uma mera ficção social. Godard, por sua vez, retrata o amor como extasiante, quase onírico, mas em um grau que pode levar a loucura, a ruína. O amor, na obra de Godard é a força motriz de todo ser humano, o sentimento mais belo que se pode experienciar, mas é também trágico, enlouquecedor e fadado a terminar. Resta perguntar se o risco vale à pena.

“Acossado”, seu filme de estreia, é sobre um malandro egoísta que se entrega totalmente para o amor, e sobre uma garota aparentemente inocente e pura que nega seus sentimentos em vão.

A trama é conduzida de tal forma que seu clímax revela um retrato do amor que é irracional, incontrolável, doce, mas mortífero.

Patricia, personagem principal do longa, entrega o amado para a morte certa em uma tentativa de afirmar para si mesma que não o ama, mesmo que a morte dele cause nela um vazio existencial que prova exatamente o contrário.

Amar em “Acossado”, é involuntário, irracional e irresistível. É leve e puro, mas pode levar a ruína, a decepção, ao vazio.

No final da trama, Patricia percebe que não pode negar seu amor, e que a perda a torna vazia e infeliz. No entanto, seu amado e talvez até mesmo seus sentimentos por ela, assim como Jean-Luc Godard, estão mortos.

“Bande à part”, de 1964, também faz um interessante estudo sobre o amor com seu triângulo amoroso principal protagonizado por Odile, Arthur e Franz. Aqui, a paixão mais uma vez leva a irracionalidade, a loucura, ao abandono das certezas, ao oferecer uma realidade que inicialmente é lúdica e aventureira. Amar vira uma forma de escapismo do comodismo, da vida estagnada e comum. Contudo, o escapismo completo, a fuga, mais uma vez leva à tragédia.

Odile fica tão encantada com as danças em cafés, os beijos no curso de inglês, as conversas no metrô e as corridas pelo Louvre que se deixa levar pela vontade de seus amantes a ponto de ajudar na realização de um roubo contra sua própria tia.

Antes do roubo, a garota decide ficar com Arthur, mesmo que este tenha expectativas completamente diferentes acerca da relação. Odile quer casar-se, enquanto o ladrão tem pretensões muito menos sérias.

O roubo, no entanto, termina de forma trágica, com Odile acreditando ter sido cúmplice do assassinato da tia e com Arthur sendo baleado pelo próprio tio. A garota agora foge com Franz, não pelo escapismo inocente de outrora, mas por uma necessidade real. É questionável no final se a garota realmente ama Franz ou se enxerga nele apenas uma forma de escapar, literal e metaforicamente, de sua vida.

Neste longa o amor é realmente apaixonante, belo e divertido, mas também beira a completa fuga das responsabilidades, do mundo real. O amor de “Bande à part” é tão belo quanto opioide, tão vivo quanto mortal. Franz e Odile escapam juntos, por amor ou por necessidade. É incerto.

As únicas certezas que temos são: suas antigas vidas estão mortas, Arthur está morto, e, 58 anos depois, Jean-Luc Godard, o senhor das alegrias e tristezas destes personagens, também está morto.

Um ano depois de “Bande à part” o cineasta lança “Pierrot le fou”, estrelado pelos dois atores favoritos de Godard: Jean-Paul Belmondo, de “Acossado”, e Anna Karina, estrela de “Bande à part” e até então sua esposa. “Pierrot le fou” é o manifesto apoteótico do amor na nouvelle vague. “Pierrot le fou” é simultaneamente um dos maiores relatos sobre o amor, a loucura, o consumismo capitalista e o escapismo. “Pierrot le fou” é meu filme favorito, o Magnum opus do, agora morto, Jean-Luc Godard.

“Pierrot le fou” é mais uma história dele e dela. Ele é Ferdinand, ela é Marianne. Ele ama ela. Ela provavelmente não ama ele. Ela levou um tiro. Ele explodiu a própria cabeça.

Ferdinand, no início, é um burguês cansado da própria burguesia. A alta sociedade em que está inserido parece cada vez mais fútil, vazia, assim como seu casamento e vida familiar: estagnados, frios, monótonos. Por isso, ele decide abandonar conforto, reputação e certeza para fugir com Marianne, que é selvagem, veloz, viva, interessante e energética.

Marianne, contudo, assassinou um homem e está envolvida com uma complicada rede de grupos armados, fatos que não mudam a decisão Ferdinand que segue apaixonado e devoto à ela, pois ela é, para ele, símbolo de tudo o que procura: liberdade e metamorfose.

A mulher, entretanto, não ama Ferdinand. Pierrot, como ela o apelida, acaba por descobrir que ela é na verdade apaixonada por outro homem. Marianne era a única certeza para Ferdinand. Ele abriu mão, de bom grado, de tudo o que tinha, de seu próprio “eu” em busca da única certeza que lhe importava: o amor dela. Quando ele perde a única razão de viver, a única certeza de sua vida, Pierrot enlouquece, mata ela, seu amante e em seguida, amarra dinamite na própria cabeça e se explode.

O amor libertou Ferdinand mas também o fez escravo, o fez louco. Ele estava disposto a cometer qualquer loucura por uma única certeza, e quando até esta se esvai, ele perde seu propósito, sua razão de ser, e não vê alternativa se não o suicídio.

O amor aqui, é belo, louco, melancólico, libertador, opressivo e mais uma vez mortífero. Marianne está morta. Pierrot está morto. Jean-Luc Godard está morto.

Na década de 80, Godard vendeu “Prénom Carmen” como o “Pierrot le fou” daquela década, uma atualização de seu grande retrato do amor e da loucura para toda uma nova geração de amantes.

O filme, no entanto, já mostra sinais do seu crescente desapego com o cinema tradicional. A trama é similar à do longa da década de 60, porém as diferenças na forma e na execução, tornam esta obra completamente diferente. “Prénom Carmen” é muito mais subjetivo e abstrato. “Pierrot” é sobre um homem que larga tudo para ficar com uma mulher envolvida com crimes que não o ama de verdade, resultando em um desfecho povoado por loucura e morte. “Carmen” é um filme sobre um homem que larga tudo para ficar com uma mulher que planeja cometer um grande crime, que no final das contas não o ama de verdade, o resultado é loucura e matança. Os dois filmes são completamente diferentes.

Matar Carmen no final da trama, da mesma forma como fez com Marianne, é mais uma etapa do projeto de Godard para entender a linguagem e em seguida matá-la. Hoje, percebemos que ele teve sucesso. Carmen está morta. A linguagem está morta. Jean-Luc Godard está morto.

Em seguida, em 1985, Godard dirige “Eu Vos Saúdo, Maria” que trata daquele que é talvez o casal mais importante do mundo ocidental: José e Maria, mas transportando a história da anunciação e nascimento do Cristo para a França contemporânea. Acompanhamos então um Joseph taxista e uma Marie frentista.

O lançamento do longa na época foi extremamente polêmico, rendendo críticas do Papa João Paulo II e censura em território brasileiro à mando de José Sarney, o que, considerando a postura eternamente irreverente de Godard, provavelmente o agradou. A maior parte da polêmica é devido ao uso da nudez como forte recurso temático. Nudez esta que não carrega qualquer luxúria, é apenas utilizada para debater sexualidade, pureza, o papel da mulher e a imagem atribuída ao corpo feminino.

O filme segue de maneira bem fiel os elementos principais da narrativa bíblica. Aqui, contudo, a responsabilidade de ter um filho de Deus é muito mais reforçada. Marie é inicialmente desacreditada quando diz carregar o messias e, acima de tudo, precisa passar por todo um processo de ressignificação da própria pessoa, da própria sexualidade, para carregar tal fardo.

Marie então sacrifica quem ela é. Tanto ela quanto Joseph passam a enxergar a nudez e o corpo dela como alheios a qualquer sexualidade e personalidade. Ela se torna apenas ferramenta do plano divino. A mulher Marie está morta. Sua sexualidade está morta. Jean-Luc Godard está morto.

Apesar de ele se utilizar de outras significações, o amor na obra de Godard é sempre complexo, contraditório, caótico, louco, belo e mortal.

Godard amou muitas vezes durante sua vida, ele se casou três vezes. O amor de sua vida, porém, não era uma mulher, era o cinema.

O cinema foi pra Jean-Luc razão de viver, escapismo, realidade, beleza, tragédia, mas acima de tudo, verdade. O artista era apaixonado por sua arte de modo quase insano, de maneira que ela tomou sua própria vida. Não era possível distinguir Jean-Luc do cinema. Godard é cinema. Cinema é Godard.

Com a conclusão de sua carreira, de seu projeto vanguardista de descobrimento de toda uma arte, Jean-Luc concluiu também sua função, seu chamado maior. Sua vida era cinema, quando este estivesse resolvido, a vida não importaria mais. Assim como aconteceu com tantos de seus personagens, o amor libertou e escravizou Godard. E sim, valeu a pena.

Jean-Luc Godard está morto. O cinema ainda está vivo.

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