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Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

O BANDIDO DA LUZ VERMELHA E A MARGINALIDADE DOS ICONOCLASTAS NACIONAIS OU “UM PAÍS DE MEDÍOCRES”

 


Não existe indústria cultural mais subestimada no Brasil do que o cinema. O consenso do imaginário popular é de que o cinema nacional não é bom e que as produções se resumem a comédias de baixa qualidade e a dramas que tratam de temas intrinsicamente nacionais e presos à temática da pobreza. Muitos utilizam a baixa qualidade de várias das produções de maior bilheteria e sucesso como argumento para fortalecer essa ideia, contudo, essa narrativa não poderia estar mais distante da realidade de um país que possui movimentos cinematográficos que rivalizam com a Nouvelle Vague e com o Neorrealismo Italiano em questão de relevância e influência.

O argumento baseado na análise da qualidade das maiores bilheterias também se mostra falho quando o aplicamos para a indústria americana, tão reverenciada por seus grandes clássicos da sétima arte, mas que têm como suas 10 maiores bilheterias:

1.      Vingadores Ulltimato: Um filme de ação divertido, mas que não tem muito a falar e é pobre visualmente, principalmente em relação ao material original;

2.      Avatar: Um filme que impressiona pelo aspecto técnico, mas que tem um roteiro esquecível, não passando de mais um mito do branco salvador e de uma versão piorada de Dança com Lobos;

3.      Titanic: Este sim, um ótimo longa, tanto no aspecto técnico quanto artístico;

4.      Homem-Aranha: Sem volta pra Casa: Outro filme de ação sem personalidade que depende da apelação para a nostalgia para compensar pela falta de inventividade visual e narrativa;

5.      Star Wars O Despertar da Força: Filme divertido e emocionante, mas que é dependente da nostalgia e dos sucessos de outrora, trazendo pouco à mesa para o gênero e até mesmo para a franquia;

6.      Vingadores Guerra Infinita: Mais um filme de franquia divertido que diz pouco;

7.      Jurassic world: Franquia, nostalgia, ação barata e atores famosos. Preciso dizer mais alguma coisa?

8.      Vingadores: Bom filme de super-heróis, mas que não é nem de perto a nata do cinema americano;

9.       Velozes e Furiosos 7: Se você pedisse para uma inteligência artificial fazer o filme mais “ação e aventura para o público masculino”, ela faria exatamente esse filme.

10.   Frozen II: sequência completamente comercial de um filme mediano.

A lista deixa evidente que até mesmo numa indústria consagrada e povoada por clássicos, os filmes de maior bilheteria dificilmente são demonstrativos das melhores obras que ela pode oferecer. Inclusive, vale pontuar que a lista de filmes com maior número de espectadores no Brasil, apesar de conter filmes terríveis e muito piores que qualquer um da lista americana, também contém grandes produções aclamadas pela crítica que são infinitamente melhores que qualquer uma das obras da lista americana, como é o exemplo de “Dona Flor e seus Dois Maridos”, “A Dama do Lotação”, “Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia” e até mesmo “Tropa de Elite 2”.

Claro, não nego que o cinema nacional é problemático. É evidente que a indústria é limitada e determinada por um restrito grupo de estúdios e produtores guiados pelas tendências mais rentáveis, como acontece em outros lugares do mundo, ainda que aqui os efeitos negativos fiquem mais evidentes pelo diminuto tamanho de nossa indústria.

As exceções, entretanto, são populares e com a devida razão. O Brasil deu ao mundo grandes artistas e obras do cinema que tiveram impacto profundo no fazer artístico do meio. O Cinema Novo, encabeçado pelo grande Glauber Rocha é exemplo disso. O movimento segue a tendência criada pela Nouvelle Vague de rompimento com padrões estéticos e narrativos do cinema, além de ser importante veículo para a análise do verdadeiro Brasil que não está nos noticiários ou nas telenovelas.

O Cinema Novo é símbolo da iconoclastia do cinema brasileiro, porém, havia cineastas dispostos a romper ainda mais com as amarras do cinema tradicional, tratando de temas polêmicos de forma anárquica narrativa e esteticamente. É deste movimento de iconoclastia em relação aos iconoclastas que surge o movimento que abordo aqui: O Cinema Marginal.

Se já é pouco comum falar de Cinema Novo fora da bolha de cinema, o discurso acerca do Cinema Marginal é quase inexistente para o público geral que tanto critica a cena nacional. Chega a ser injusto que um movimento tão ousado, particular e inovador seja ignorado no seu próprio país de origem, ainda mais quando este não tem uma indústria cinematográfica forte e que tem uma população que reclama tanto da qualidade das obras produzidas por aqui.

Fica claro então que a culpa da (entre muitas aspas) “má qualidade” do cinema nacional não é demérito dos nossos cineastas, mas do nosso público, que prefere as mesmas obras regurgitadas, das quais tanto reclama, à alternativa de consumir um conteúdo não tradicional.

Um dos maiores exemplos desta forma de se fazer cinema que é tão genial quanto injustiçada é “O Bandido da Luz Vermelha”, do incrível Rogério Sganzerla.

A trama do filme reinterpreta o caso real do criminoso de mesma alcunha, porém, adotando diversas liberdades criativas e com pouca preocupação com fidelidade à história real.

O filme apresenta diversos focos narrativos, acompanhamos o bandido da luz vermelha em seus crimes e em suas reflexões, assim como a ação policial que busca capturá-lo e os setores da política e da mídia que são afetados pelo caso.

A narrativa desconstruída de Sganzerla carrega um forte tom de crítica à mídia sensacionalista, que teve sua parcela de culpa pela inflação do caso real e que no filme é mostrada como responsável por dar ao bandido da luz vermelha um propósito, uma identidade, algo que, devido à marginalização social, ele nunca teve. Essa exposição midiática acaba por ampliar a ocorrência de seus crimes, que funcionam, de certa forma, como ferramenta de autoafirmação.

O diretor é inovador ao incorporar, como ferramentas de narração, áudios que simulam programas de rádio sensacionalistas e remetem aos recordatórios de histórias em quadrinhos – grande referência visual e narrativa de Sganzerla. O diretor, porém, é tão revolucionário que antecipa em 20 anos a tendência dos quadrinhos em utilizar o jornalismo como narrador das histórias.

Essa narração é feita em tom de paródia, demonstrando os absurdos da imprensa marrom que mente abertamente para explorar ao máximo a história, mesmo que às custas de tragédias e sem nunca se aprofundar nas questões realmente relevantes.

O roteiro também critica a ineficácia da polícia e a inação da classe política, que pouco faz para resolver os problemas sociais e acaba por estar, inclusive, envolvida com atividades criminosas ligadas ao bandido.

O filme é, sobretudo, um retrato da coleção de absurdos normatizados na sociedade brasileira, o que é ainda mais relevante considerando que o longa foi lançado no auge de uma ditadura cívico-militar.

A crítica se solidifica, no final do longa, com a morte suicida do bandido que não se entrega por vaidade. A polícia nem mesmo consegue reconhecer que o cadáver encontrado é do bandido da luz vermelha. A imprensa marrom, por sua vez, cansa do caso e vai buscar refúgio em histórias mirabolantes de discos voadores.

Narrativamente, “O Bandido da Luz Vermelha” é extremamente particular, principalmente considerando a época em que foi lançado. O longa tem um roteiro veloz que muda de ponto focal o tempo todo, não se preocupando com detalhes da história que afastem a trama de seus temas principais. Também há espaço para cenas mais dedicadas à psiquê dos personagens e a construções mais abstratas e poéticas. Tudo isso apropriando-se de estéticas e enquadramentos inspirados em histórias em quadrinhos, expandindo assim os limites do cinema como linguagem.

O não reconhecimento de Rogério Sganzerla como um de nossos maiores artistas e orgulho nacional só demonstra como o problema, no fundo, não é da arte, é do público. O público brasileiro que acaba por selecionar e dar espaço apenas às mesmas obras que ama criticar. Nosso público clama muito por revolucionários, mas não entra em suas trincheiras quando eles surgem. No Brasil, os iconoclastas são tomados por chatos e pretensiosos e, até os que conseguem sucesso comercial, não são valorizados o suficiente.

O nome “Cinema Marginal” serve como uma luva porque o movimento é marginal no sentido de estar fora das convenções do cinema, mas, infelizmente, por também ser marginalizado em relação ao reconhecimento próprio do público.

Antes fosse o Brasil um país de marginais ao invés deste país de medíocres.



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