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Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

“JEAN-LUC GODARD, OS JOVENS, A POLÍTICA, O AMADURECIMENTO E A AUTOCRÍTICA” OU “UMA ESTANTE LOTADA DE LIVRINHOS VERMELHOS”.

 


A nouvelle vague é talvez o movimento mais importante da história do cinema. Pelas mãos dos franceses, a sétima arte mudou: os cineastas não eram mais descendentes dos grandes donos de estúdios, os movimentos de câmera eram ousados e se distanciavam cada vez mais da linguagem do teatro, o improviso era incentivado, as narrativas eram menos diretas e as cenas tinham maior liberdade metafórica. Em resumo, os diretores da nova onda do cinema francês transformaram os longas-metragens em uma espécie de poesia visual que era questionadora, irreverente e rebelde.

A irreverência do cinema francês é reflexo de seu tempo: desde a década de 50, vinham crescendo movimentos políticos que questionavam o capitalismo e a conjuntura política da época. Muitos desses movimentos tinham grande ligação com a juventude, que aos poucos desenvolvia uma cultura própria e se tornava cada vez mais diferente da geração de seus pais.

Essa intensa atividade política e social tem seu auge em uma década de 60 povoada pelo rock ‘n’ roll, pela cultura hippie e pelos movimentos estudantis, e é justamente nos anos 60 que a nouvelle vague tem seu período mais frutífero.

O cenário político sessentista era a musa perfeita para uma geração de cineastas rebeldes e bem instruídos politicamente. A nouvelle vague dedicou muitos dos seus filmes para tratar de amor, as relações e diferenças entre homens e mulheres, poesia, e, principalmente, política, com um foco especial nos movimentos estudantis que explodiram no inesquecível maio de 68.

Entre nomes ilustres como Àgnes Varda, François Truffaut, Alain Resnais e Éric Rohmer, talvez seja Jean-Luc Godard o diretor mais reconhecido do movimento, e isto não é sem motivo, os filmes de Godard são tocantes, inovadores e reflexivos ao debater as grandes questões da humanidade e fazer uma leitura crítica da sociedade.

Um dos aspectos mais interessantes da obra de Godard é seu fascínio por retratar esses movimentos políticos da juventude francesa. O tema permeia diversos filmes, como “A Chinesa” (La Chinoise), “Masculino- Feminino” (Masculin, Féminin), “Tudo Vai Bem” (Tout Va Bien) e até “Carmen de Godard” (Prénom Carmen) até certo ponto.

As lentes de Godard filmam os ideais revolucionários e contestadores que motivavam a juventude, porém, elas também se empenham na busca por retratar a formação política dos jovens que, apesar de guiados pelos motivos certos, são ingênuos, emotivos, pouco flexíveis, contraditórios e pretenciosos.

A genialidade do diretor se mostra no fato de que, apesar de tudo, ele simpatizava e estava envolvido com diversos movimentos estudantis. Ora, Godard até se considerava maoísta durante certo período.

As críticas feitas em tom irônico e cômico servem como autocrítica do setor político do qual ele mesmo era parte e como estudo da gênese dos revolucionários e líderes políticos por vir. Godard enxerga e exalta uma beleza particular presente naqueles jovens idealistas e utópicos, que no fundo, estão lutando uma batalha justa e digna.

 “Masculino- Feminino” e “A Chinesa” são dois filmes em que esse misto de autocrítica e de exaltação aos movimentos estudantis e a setores da esquerda funciona maravilhosamente bem.

Em “Masculino Feminino”, acompanhamos Paul (Jean-Pierre Léaud), um jovem que após deixar o serviço militar francês se torna ativista contra a guerra do Vietnã. Além disso, ele começa um relacionamento com Madeleine (Chantal Goya), uma garota extremamente inteirada na cultura pop da época que tenta emplacar uma carreira como cantora do yé-yé.

O casal principal representa duas das faces da juventude sessentista: enquanto Madeleine é fascinada pela cultura jovem e pelo consumo, Paul se vê como uma pessoa séria, informada e acima da cultura de massas. Ele se considera superior moral e intelectualmente à sua namorada e às mulheres em geral, por considerá-las fúteis e superficiais. Contudo, Paul também é superficial: ele passa seus dias discutindo qual sutiã as mulheres na rua estão usando, boa parte do seu discurso é formado por bordões e ele não toma atitudes reais na luta por sua causa.

Paul é a encarnação de um sentimento de rebeldia e de descoberta do mundo que poderia resultar em pretensão e elitismo, mas que é exaltado por Godard devido à sua tentativa bem-intencionada de questionar o status quo. O diretor não vê as lutas da juventude como perfeitas, mas ele enxerga nelas um potencial para a mudança e para a formação de futuras gerações de intelectuais politizados e preocupados com as mazelas sociais.

“A Chinesa” é a adaptação do romance “Os Demônios” de Dostoiévski, entretanto, a trama originalmente situada na Rússia do século XIX é transposta para a França de 1967. O cineasta usa deste tipo de adaptação que altera a época e atualiza questões políticas em outras de suas obras, como “Carmen de Godard” e “Eu Vos Saúdo Maria” (Je Vous Salue, Marie). O método é revolucionário por permitir uma adaptação que é também uma obra metalinguística que comenta a obra original e debate as mudanças, ou falta delas, no mundo.

A trama do longa se passa majoritariamente em um apartamento, onde um grupo de estudantes formam um movimento maoísta e discutem teoria e acontecimentos políticos contemporâneos.

Nesta obra os jovens também são mostrados ainda em etapa de amadurecimento e são até mais pretenciosos que Paul de “Masculino- Feminino”. Aqui, um dos membros do grupo é expulso apenas por discordar do resto quanto a pequenos detalhes da teoria. Ele continua tendo um posicionamento extremamente similar ao dos outros, mas a divergência não leva ao diálogo, leva a expulsão.

O aspecto cômico brilha em “A Chinesa”, que utiliza de diversas piadas visuais para questionar aspectos do grupo. Cito como exemplo o grande número de equipamentos e objetos claramente americanos e industriais para retratar a revolução chinesa, as transições entre fotos pintadas da revolução cubana e imagens dos quadrinhos americanos e as diversas estantes no apartamento que contém apenas o livro vermelho de Mao.

Por outro lado, o grupo é mostrado como um lugar acolhedor para jovens de origem simples que tem nele a oportunidade de aprofundar seu pensamento político e de questionar a realidade de onde vieram.

Vale a pena fazer um parêntese para comentar o segmento “Revisões de um Manifesto” do último filme de Wes Anderson, “A Crônica Francesa”, que aborda temas parecidos. O diretor Wes Anderson é obcecado pela cultura francesa, sobretudo pelo seu cinema, e em nenhum outro filme isso fica tão claro.

“A Crônica Francesa” é recheado de referências à nouvelle vague, desde o fato da trama ser situada na década de 60, quanto pela fotografia com ênfase em simetria e em cores - características bem comuns nos filmes de Godard. As similaridades também são temáticas, principalmente em “Revisões de um Manifesto”, que retrata de forma cômica um movimento estudantil que, inicialmente, “luta” pela livre circulação de homens nos dormitórios femininos.

O movimento em pouco tempo se transforma em uma mobilização juvenil anti-establishment que questiona todos os setores da sociedade e consegue organizar uma manifestação que tem forte poder político e que exige o posicionamento dos poderosos.

Os estudantes, entretanto, têm sua derrocada por simplesmente não conseguirem conciliar opiniões políticas divergentes, embora muito parecidas. As aspirações nobres e utópicas, assim como a intransigência, são percebidas e relatadas pela jornalista que narra essa parte do filme. Ela é favorável às demandas dos jovens apesar de perceber as falhas organizacionais.

Anderson faz aqui uma grande homenagem à fase de Godard na nouvelle vague, apresentando as teses e temas do diretor de maneira um pouco mais leve e cômica, demonstrando também que as pautas dos filmes de Godard continuam atuais e influentes.

Jean-Luc Godard é extremamente influente na sétima arte, porém, ele não é apenas um grande cineasta, ele é também um grande intelectual e isso fica claro em seus filmes que são uma espécie de manifesto-poesia que continuam atuais mais de meio século depois. Talvez o mais importante do discurso de Godard nesses filmes seja o fato de ele se permitir criticar um setor político do qual ele faz parte enquanto ao mesmo tempo o exalta.

A autocrítica e a análise política racional que povoam os filmes do diretor contribuem muito para a discussão política e parecem estar em falta no cenário atual, onde por enxergar a necessidade de se contrapor a um setor político boçal, a esquerda acaba por se tornar muito emotiva, imagem esta que pode inclusive ser usada como munição pelos seus críticos.

Godard resume bem seu pensamento político que questiona a si mesmo quando no final de “Made in USA”, diz considerar a direita e a esquerda problemáticas: a direita por se tornar idiota devido à sua crueldade e a esquerda por ser sentimental demais. Não é que o diretor seja centrista ou relativize os dois campos, pelo contrário, ele é claramente adepto da esquerda, porém, ele enxerga uma necessidade de criticar também o seu lado do debate e de buscar uma revolução no diálogo político que abandone termos como “direita e esquerda” em busca de uma discussão mais complexa, transformadora e menos rotuladora. Uma maneira de encarar o debate político que é tão rebelde, irreverente, questionadora, poética e intelectual quanto sua arte.

A obra de Godard é extensa e permite a discussão de muitos outros temas interessantes. Por isso, me comprometo a em breve (não me cobre quando) tratar do amor e das loucuras e das tragédias cometidas por ele, que é outro dos temas comuns das obras do diretor.


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