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“JEAN-LUC GODARD, OS JOVENS, A POLÍTICA, O AMADURECIMENTO E A AUTOCRÍTICA” OU “UMA ESTANTE LOTADA DE LIVRINHOS VERMELHOS”.
A nouvelle vague é talvez o movimento mais importante da história do cinema. Pelas mãos dos franceses, a sétima arte mudou: os cineastas não eram mais descendentes dos grandes donos de estúdios, os movimentos de câmera eram ousados e se distanciavam cada vez mais da linguagem do teatro, o improviso era incentivado, as narrativas eram menos diretas e as cenas tinham maior liberdade metafórica. Em resumo, os diretores da nova onda do cinema francês transformaram os longas-metragens em uma espécie de poesia visual que era questionadora, irreverente e rebelde.
A
irreverência do cinema francês é reflexo de seu tempo: desde a década de 50,
vinham crescendo movimentos políticos que questionavam o capitalismo e a conjuntura
política da época. Muitos desses movimentos tinham grande ligação com a
juventude, que aos poucos desenvolvia uma cultura própria e se tornava cada vez
mais diferente da geração de seus pais.
Essa
intensa atividade política e social tem seu auge em uma década de 60 povoada
pelo rock ‘n’ roll, pela cultura hippie e pelos movimentos estudantis, e é
justamente nos anos 60 que a nouvelle vague tem seu período mais
frutífero.
O cenário
político sessentista era a musa perfeita para uma geração de cineastas rebeldes
e bem instruídos politicamente. A nouvelle vague dedicou muitos dos seus
filmes para tratar de amor, as relações e diferenças entre homens e mulheres,
poesia, e, principalmente, política, com um foco especial nos movimentos
estudantis que explodiram no inesquecível maio de 68.
Entre nomes
ilustres como Àgnes Varda, François Truffaut, Alain Resnais e Éric Rohmer,
talvez seja Jean-Luc Godard o diretor mais reconhecido do movimento, e isto não
é sem motivo, os filmes de Godard são tocantes, inovadores e reflexivos ao
debater as grandes questões da humanidade e fazer uma leitura crítica da
sociedade.
Um dos
aspectos mais interessantes da obra de Godard é seu fascínio por retratar esses
movimentos políticos da juventude francesa. O tema permeia diversos filmes,
como “A Chinesa” (La Chinoise), “Masculino- Feminino” (Masculin, Féminin),
“Tudo Vai Bem” (Tout Va Bien) e até “Carmen de Godard” (Prénom Carmen) até
certo ponto.
As lentes
de Godard filmam os ideais revolucionários e contestadores que motivavam a
juventude, porém, elas também se empenham na busca por retratar a formação
política dos jovens que, apesar de guiados pelos motivos certos, são ingênuos,
emotivos, pouco flexíveis, contraditórios e pretenciosos.
A
genialidade do diretor se mostra no fato de que, apesar de tudo, ele
simpatizava e estava envolvido com diversos movimentos estudantis. Ora, Godard
até se considerava maoísta durante certo período.
As críticas
feitas em tom irônico e cômico servem como autocrítica do setor político do
qual ele mesmo era parte e como estudo da gênese dos revolucionários e líderes
políticos por vir. Godard enxerga e exalta uma beleza particular presente
naqueles jovens idealistas e utópicos, que no fundo, estão lutando uma batalha
justa e digna.
“Masculino- Feminino” e “A Chinesa” são dois
filmes em que esse misto de autocrítica e de exaltação aos movimentos
estudantis e a setores da esquerda funciona maravilhosamente bem.
Em
“Masculino Feminino”, acompanhamos Paul (Jean-Pierre Léaud), um jovem que após
deixar o serviço militar francês se torna ativista contra a guerra do Vietnã.
Além disso, ele começa um relacionamento com Madeleine (Chantal Goya), uma
garota extremamente inteirada na cultura pop da época que tenta emplacar uma
carreira como cantora do yé-yé.
O casal
principal representa duas das faces da juventude sessentista: enquanto
Madeleine é fascinada pela cultura jovem e pelo consumo, Paul se vê como uma
pessoa séria, informada e acima da cultura de massas. Ele se considera superior
moral e intelectualmente à sua namorada e às mulheres em geral, por
considerá-las fúteis e superficiais. Contudo, Paul também é superficial: ele
passa seus dias discutindo qual sutiã as mulheres na rua estão usando, boa
parte do seu discurso é formado por bordões e ele não toma atitudes reais na
luta por sua causa.
Paul é a
encarnação de um sentimento de rebeldia e de descoberta do mundo que poderia resultar
em pretensão e elitismo, mas que é exaltado por Godard devido à sua tentativa
bem-intencionada de questionar o status quo. O diretor não vê as lutas da
juventude como perfeitas, mas ele enxerga nelas um potencial para a mudança e
para a formação de futuras gerações de intelectuais politizados e preocupados
com as mazelas sociais.
“A Chinesa”
é a adaptação do romance “Os Demônios” de Dostoiévski, entretanto, a trama
originalmente situada na Rússia do século XIX é transposta para a França de
1967. O cineasta usa deste tipo de adaptação que altera a época e atualiza
questões políticas em outras de suas obras, como “Carmen de Godard” e “Eu Vos
Saúdo Maria” (Je Vous Salue, Marie). O método é revolucionário por permitir uma
adaptação que é também uma obra metalinguística que comenta a obra original e
debate as mudanças, ou falta delas, no mundo.
A trama do longa se passa majoritariamente em um apartamento, onde um
grupo de estudantes formam um movimento maoísta e discutem teoria e
acontecimentos políticos contemporâneos.
Nesta obra os jovens também são mostrados ainda em etapa de
amadurecimento e são até mais pretenciosos que Paul de “Masculino- Feminino”.
Aqui, um dos membros do grupo é expulso apenas por discordar do resto quanto a
pequenos detalhes da teoria. Ele continua tendo um posicionamento extremamente
similar ao dos outros, mas a divergência não leva ao diálogo, leva a expulsão.
O aspecto cômico brilha em “A Chinesa”, que utiliza de diversas piadas
visuais para questionar aspectos do grupo. Cito como exemplo o grande número de
equipamentos e objetos claramente americanos e industriais para retratar a
revolução chinesa, as transições entre fotos pintadas da revolução cubana e
imagens dos quadrinhos americanos e as diversas estantes no apartamento que
contém apenas o livro vermelho de Mao.
Por outro lado, o grupo é mostrado como um lugar acolhedor para jovens
de origem simples que tem nele a oportunidade de aprofundar seu pensamento político
e de questionar a realidade de onde vieram.
Vale a pena fazer um parêntese para comentar o segmento “Revisões de um Manifesto”
do último filme de Wes Anderson, “A Crônica Francesa”, que aborda temas parecidos.
O diretor Wes Anderson é obcecado pela cultura francesa, sobretudo pelo seu
cinema, e em nenhum outro filme isso fica tão claro.
“A Crônica Francesa” é recheado de referências à nouvelle vague, desde
o fato da trama ser situada na década de 60, quanto pela fotografia com ênfase
em simetria e em cores - características bem comuns nos filmes de Godard. As similaridades
também são temáticas, principalmente em “Revisões de um Manifesto”, que retrata
de forma cômica um movimento estudantil que, inicialmente, “luta” pela livre
circulação de homens nos dormitórios femininos.
O movimento em pouco tempo se transforma em uma mobilização juvenil anti-establishment
que questiona todos os setores da sociedade e consegue organizar uma manifestação
que tem forte poder político e que exige o posicionamento dos poderosos.
Os estudantes, entretanto, têm sua derrocada por simplesmente não
conseguirem conciliar opiniões políticas divergentes, embora muito parecidas. As
aspirações nobres e utópicas, assim como a intransigência, são percebidas e
relatadas pela jornalista que narra essa parte do filme. Ela é favorável às
demandas dos jovens apesar de perceber as falhas organizacionais.
Anderson faz aqui uma grande homenagem à fase de Godard na nouvelle
vague, apresentando as teses e temas do diretor de maneira um pouco mais
leve e cômica, demonstrando também que as pautas dos filmes de Godard continuam
atuais e influentes.
Jean-Luc Godard é extremamente influente na sétima arte, porém, ele não
é apenas um grande cineasta, ele é também um grande intelectual e isso fica
claro em seus filmes que são uma espécie de manifesto-poesia que continuam
atuais mais de meio século depois. Talvez o mais importante do discurso de
Godard nesses filmes seja o fato de ele se permitir criticar um setor político
do qual ele faz parte enquanto ao mesmo tempo o exalta.
A autocrítica e a análise política racional que povoam os filmes do
diretor contribuem muito para a discussão política e parecem estar em falta no
cenário atual, onde por enxergar a necessidade de se contrapor a um setor
político boçal, a esquerda acaba por se tornar muito emotiva, imagem esta que
pode inclusive ser usada como munição pelos seus críticos.
Godard resume bem seu pensamento político que questiona a si mesmo
quando no final de “Made in USA”, diz considerar a direita e a esquerda
problemáticas: a direita por se tornar idiota devido à sua crueldade e a
esquerda por ser sentimental demais. Não é que o diretor seja centrista ou
relativize os dois campos, pelo contrário, ele é claramente adepto da esquerda,
porém, ele enxerga uma necessidade de criticar também o seu lado do debate e de
buscar uma revolução no diálogo político que abandone termos como “direita e
esquerda” em busca de uma discussão mais complexa, transformadora e menos
rotuladora. Uma maneira de encarar o debate político que é tão rebelde,
irreverente, questionadora, poética e intelectual quanto sua arte.
A obra de Godard é extensa e permite a discussão de muitos outros temas
interessantes. Por isso, me comprometo a em breve (não me cobre quando) tratar
do amor e das loucuras e das tragédias cometidas por ele, que é outro dos temas
comuns das obras do diretor.
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