Pular para o conteúdo principal

Destaques

Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

HOMENS QUE CHORAM E MATAM OU O CULTO DISTORCIDO AO JUSTICEIRO E AO CAPITÃO NASCIMENTO

 




Em 1974 O Justiceiro fez sua estreia na revista do Homem-Aranha. Desde então o personagem se tornou um dos mais marcantes da Marvel, rendendo uma grande quantidade de títulos nas mãos dos mais diversos roteiristas, três filmes para o cinema e uma série de TV.

O Justiceiro nasce quando o veterano da guerra do Vietnã, Frank Castle, assiste sua família ser brutalmente assassinada pela máfia. O trauma e a sede de vingança são tão grandes que levam Frank a iniciar uma caçada pessoal pelos criminosos da cidade de Nova York.

Diversos personagens, tanto na Marvel quanto na DC, tornam-se vigilantes motivados por vingança, eventualmente esse sentimento se mescla com um senso de justiça e de ajuda aos mais fracos, com o Justiceiro é diferente: ele executa os criminosos e sua única justificativa é a vingança.

Apesar da popularidade do personagem, ele foi, por muito tempo, extremamente raso. Era só mais um daqueles personagens “massavéio” que carregava uma arma imensa e soltava frases de efeito.

O Justiceiro só foi realmente bem explorado no início dos anos 2000, quando o roteirista irlandês Garth Ennis assume o personagem no selo Marvel Max focado no público adulto.

Ennis já havia trabalhado com o Justiceiro anteriormente no selo Marvel Knights, onde escreveu histórias com grande presença de seu característico humor negro. Já no selo Max o roteirista apostou em uma abordagem diferente, focando em questões mais atuais como o terrorismo e o perfil psicológico de Frank Castle.

A fase de Garth Ennis no título começa na minissérie “Nascido para Matar” que retrata os últimos dias de Frank na guerra do Vietnã. Na história, o roteirista explora a origem do Justiceiro de forma diferente: a guerra não é usada apenas como uma explicação para as habilidades de Castle com armas de fogo, ela se torna tão importante para a origem do vigilante quanto o assassinato de sua família. Frank Castle já era uma pessoa que tendia a comportamentos violentos e, o horror da guerra, assim como o abandono aos veteranos no pós-guerra apenas ampliam isso. Durante o serviço no Vietnã, o então capitão Castle já apresentava um gosto pela violência assim como uma necessidade de eliminar tudo aquilo que considerava errado.

Talvez a morte da família do personagem apenas tenha sido o estopim e a desculpa que ele precisava para entrar em uma caçada expurgatória de tudo aquilo que ele julga como mau.

O Justiceiro é extremamente interessante por abordar os temas da psicopatia, dos traumas obtidos durante guerras e da falência do estado, que falha em dar apoio a um homem claramente desequilibrado, em punir os responsáveis pela morte de sua família e em impedir sua cruzada sanguinolenta.

O personagem é o exemplo máximo de que os fins não justificam os meios e de que a violência e a vingança não levam a nada. Frank mata pessoas há 30 anos e nem seu sentimento, nem a criminalidade mudaram.

Infelizmente, muitos interpretam o personagem de maneira completamente errada. Não é incomum ver a caveira associada à grupos de extrema direita ou até mesmo em uniformes de policiais e funcionários de segurança. O quão irônico é ter alguém que deveria representar o estado e as leis carregando um símbolo da falência do estado e de um homem extremamente doente psicologicamente?

Um fenômeno parecido ocorre com o personagem Capitão Nascimento, vivido por Wagner Moura em Tropa de Elite. O filme conta a história de Nascimento, capitão do BOPE, que pretende se aposentar assim que escolher um substituto. A obra se propõe a acompanhar o personagem na tentativa de entender quem é o policial violento.

Durante o filme, Nascimento constantemente abusa de sua posição como policial ao agir de maneira agressiva, chegando ao extremo da tortura de inocentes.

Capitão Nascimento é, assim como Frank Castle, um homem profundamente perturbado e instável, que precisa de medicação para controlar suas crises de ansiedade. As poucas vezes em que o policial é visto no controle de si mesmo são momentos de alta adrenalina e violência.

Quanto à origem de seu comportamento violento, o longa difere do posicionamento de Garth Ennis no Justiceiro. Tropa de Elite sugere que a origem daquela violência extrema seria o ambiente em que os policiais do Rio de Janeiro estão inseridos: cercados por corrupção e pela forte presença de uma criminalidade igualmente cruel.

As duas obras são críticas ao uso de violência extrema no combate ao crime. O Justiceiro não eliminou o crime de Nova York e o BOPE é tão parte do problema quanto o tráfico.

A apropriação desses personagens por grupos extremistas é resultado de uma falta de interpretação, aliada a crenças pessoais dessa fatia do público, que enxerga os personagens de maneira simplista e maniqueísta tratando como herói qualquer um que levante a bandeira anticrime, independente dos métodos.

A inversão da mensagem de ambas as obras também resulta da identificação com a indignação diante do crime e da forma como os personagens são apresentados: eles têm forte senso de justiça e são incorruptíveis em relação à luta contra o crime.

Esse fenômeno é extremamente nocivo para a sociedade como um todo: uma camada crescente da população considera que respostas violentas e ações acima das leis são aceitáveis caso motivadas por algo como o combate ao crime. A banalização do “fins justificam os meios” cria a maior das ironias: indivíduos que desrespeitam as leis da sociedade em que estão inseridos para favorecer “leis” próprias e egoístas. Tomar Nascimento e o Justiceiro como símbolos de justiça nada mais é do que o resultado de uma sociedade cada vez mais individualista e menos preocupada com o comum, resultado de valores do capitalismo extremo.

O que é o crime com C maiúsculo, aquele cometido apenas por maldade e cobiça, se não um estado de egoísmo extremo? Os indivíduos que martirizam Castle e Nascimento são exatamente a falência social que as respetivas obras criticam.


Arte de capa por Devir Multi Studio, segue lá no Instagram 


Me segue nas minhas redes sociais:

Instagram

Twitter

Comentários

Postagens mais visitadas