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Destaques

Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

ELEGIA PARA MEUS IRMÃOS

 


Federico, meu irmão, foi poeta e dramaturgo.

Um dia, prenderam-no num porta-malas de carro com outros três colegas.

Foram colocados em frente ao muro de uma cabana numa ravina isolada. Não queriam que fosse feito de mártir.

Tentaram colocá-lo no chão, mas suas pernas simplesmente não se moviam. Seus músculos não iriam permitir que eles tivessem o prazer de vê-lo de joelhos. Após muita insistência para que ele se ajoelhasse, o oficial superior disse aos subalternos: “Deixe-o ficar de pé, em pouco tempo, não vai fazer muita diferença”.

Perguntaram se ele confessava seus crimes, não que esperassem qualquer resposta ou que algo que ele dissesse pudesse convencê-los a poupá-lo, apenas tinham prazer em se apoderar daquela formalidade, daquela suposta cordialidade civilizada enquanto exterminavam a justiça e reduziam Federico à bicho.

Não respondeu às provocações. Sua alma era limpa e inocente, sem qualquer traço de arrependimento das ações que havia tomado.

Em nenhum momento desviou os olhos do muro para olhar seus captores na esperança de ser poupado. Não temia a morte naquele momento, como não temeu ficar diante do inimigo nas trincheiras. Sabia que era aquele seu destino, não havia outro final mais propício para um homem como ele. Sabia que as balas não exterminariam a beleza que via nos campos de Andaluzia. Sabia que era mais sincero com sua alma morrer ali do que viver até a velhice se curvando diante daqueles boçais.

Quando fuzilaram meu irmãozinho, ele tinha verdade e justiça nos olhos.

Meu irmão foi enterrado como traidor em uma vala pública.

Em sua vida, a única coisa que traiu foi a crueldade dos homens.

 

 

Pier Paolo, meu irmão, foi cineasta e poeta.

Um dia, o pararam na rua no meio da madrugada. Ao terem certeza de que era ele mesmo, foi arrastado para fora de seu carro e espancado brutalmente. Resistindo, golpeou de volta com uma força impulsionada por toda a raiva que nutria por eles.

Ele sempre soube que não permitiriam uma vida longeva a um comunista homossexual. Sabia que eles viriam pegá-lo se não se calasse. Não se calou.

Não havia nada que ele pudesse fazer. Eram muitos. Coberto de hematomas e desmaiado de tanto apanhar, atropelaram-no repetidamente com seu próprio carro, esmagando seus ossos.

Quando lincharam meu irmãozinho, ele tinha ódio nos olhos. Ódio da crueldade dos intolerantes.

 

 

Meu irmão Héctor era quadrinista.

Um dia, arrombaram a porta de sua casa e levaram ele e suas filhas para campos de detenção ilegais.

No cárcere, torturam-no diariamente tentando fazer com que esquecesse quem era. Tentaram torná-lo sub-humano, alheio a qualquer beleza. Não conseguiram. As cicatrizes em sua pele apenas o lembravam de que podia fazer algo belo com sua humanidade.

 “Héctor escreveu a mais bela biografia sobre Che Guevara”, diziam seus próprios captores quando questionados sobre a tortura.

Torturavam porque odiavam sua compaixão e odiavam a beleza que nunca conseguiriam compreender.

Fizeram questão de mostrar a ele o assassinato de suas filhas. Se divertiam vendo o sofrimento daqueles que tem carinho para com outro ser humano.

Quando finalmente torturaram meu irmãozinho até a morte, ele ainda tinha beleza em seus olhos. Triunfou diante deles.

 

 

Cansei de vê-los derramar o sangue de meus irmãos. Cansei do assassinato daqueles que lutam pelo amor. Cansei de vê-los se aproveitarem de meus irmãos estarem dispostos a morrer por seus ideais. Cansei dessa zombaria que eles fazem da nossa paixão. Cansei dessa falsa certeza que eles têm de que se continuarem pisoteando-nos, um a um, uma hora vamos parar de lutar.

Quando eu for fuzilado, linchado ou torturado, ainda terei em meus olhos este amor incondicional pelos irmãos que partiram antes de mim. Também terei em meu olhar a melancolia de saber que não serei o último.

 

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