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CARTA PARA CALÍOPE
20, 30, 40 minutos de silêncio total naquele ponto de ônibus. Total não... Ao fundo, ainda ecoava o som do lugar maldito que eu havia deixado há pouco.
O barulho, no entanto, apesar de ter uma falta
de senso artístico notável, não me incomodava. Na minha cabeça havia
silêncio. Uma paz sufocante e paradoxalmente
aliviante.
A frota de
ônibus é reduzida durante a madrugada, mas minha demora por ali não era devido
à ausência de veículos, já haviam passado alguns que podiam me levar pra casa,
mas simplesmente não embarquei. Não sei ao certo porque.
A voz dela
quebra o silêncio cantarolando algo desconexo que não consigo identificar como
nenhuma canção que eu conheça.
Não sei quando
ela chegou, nem mesmo se já estava ali quando cheguei. O cantarolar, por outro
lado, com certeza, havia começado naquele momento. Impossível não dar atenção
àquela sinfonia.
Ela cessa
seu canto e se dirige a mim:
— Tem fogo?
— Não, eu
não fumo.
— Por quê?
— Sei lá,
eu só não fumo.
— Desconfio
disso. Ninguém é neutro em relação ao cigarro. Ou você ama o cigarro e sua
tribo de fumantes descolados ou você odeia aquele tubinho maldito que sempre
vem acompanhado de decadentes depressivos. E quem ama fuma, quem não fuma, por
consequência, odeia.
— Eu não me
encaixo em nenhuma das suas categorias. Não fumo, mas não odeio os fumantes, pelo
contrário, eu tenho um tremendo respeito por muitos deles, a Anna Karina, o
Godard, o Júlio Cortázar, a Clarice Lispector, o Giles Deleuze e a Annie Ernaux foram fumantes
notórios, por exemplo. O fumante tem uma aura estilosa. Não aquele estilo
plástico que a indústria tabagista vendeu pras pessoas, mas um estilo
irreverente, rebelde e romanticamente melancólico. Como os suicidas.
— Ótimo
argumento — ela diz sacando um Zippo do próprio bolso — Mas você se encaixa sim
em uma das categorias. Você é um fumante. Não um fumante consumado, um fumante
metafísico talvez. O outro grupo não entenderia o cigarro como você. O outro
grupo esquece que a Anna Karina fumava.
De maneira
sincera, mas com um sorriso condescendente e irônico no rosto ela muda de
assunto:
— Eu sei
que você não se lembra de mim, e não tem problema.
— Não
lembro mesmo. Nunca te vi na vida.
— Eu sei.
Mas você me conhece. Você me procura. Eu te conheço.
Pausa.
Ela traga o
cigarro e desconversa:
— Desde que
você tá aqui já passaram todos os ônibus que param nesse ponto. Tá esperando
alguém ou ainda não se deu conta de que tá no ponto errado?
Lembro-me de
não saber em que momento ela chegou naquele ponto de ônibus.
— Não, eu
tô no ponto certo e não espero encontrar ninguém, não. Eu só queria sair o mais
rápido possível do lugar em que eu estava, mas ainda não estou com vontade de
ir pra casa, quero aproveitar mais um pouco esse limbo, essa ausência.
— Por que
você vai pra casa?
— Porque eu
não tenho nenhum outro lugar pra ir.
— Não tem
mesmo?
— Não. Sei
voltar para os lugares de onde vim, mas a partir desse ponto, não conheço nada,
estou completamente perdido.
Pausa.
Eu
recomeço:
— E você?
Não entrou em nenhum dos ônibus por quê?
— Porque o
meu ônibus ainda não passou.
— Mas não
passaram todos que param nesse ponto?
— Menos o
meu. O meu é especial.
— Pra onde
ele vai?
— Não sei, gostaria
de descobrir, mas acho que seria melhor se eu não soubesse.
— Por que
entrar num ônibus sem saber o destino?
— É melhor
que ficar parado, e é melhor do que voltar pra monotonia dos velhos destinos.
— Mas nada
garante que vai ser um lugar melhor.
— É, mas
vai ser novo, e uma hora eu acabo acertando. Eu ando por andar, se chegar em
algum destino bom, ótimo, se não, não tem problema.
— Bom
argumento.
Pausa.
Ela
recomeça:
— Por que
você foi embora do lugar onde estava?
— Não fazia
sentido estar lá. Eu não entendo aquelas pessoas. Não quero entender. Aguentei o
quanto dava aquelas conversas natimortas e aquela música terrível. Saí à
francesa. Prefiro ficar aqui escutando aquela melodia triste que você estava
cantarolando.
— Não era
uma melodia triste. E você deveria ter feito que notassem sua saída.
— Ia acabar
atrapalhando a música, a festa deles.
— Que se
foda a festa deles.
Sorrio de
leve:
— Que se
foda a festa deles.
Um ônibus
para. Ela começa a embarcar. À porta, vira o rosto para mim e diz:
— Já passou
da hora de você começar a cantarolar A Melodia. Não há mais tempo para ficar
esperando sem embarcar. Não há mais tempo para visitar os velhos destinos.
A porta se
fecha.
Faço o
sinal para o próximo ônibus. Embarco sem ler o letreiro.
Desde então
ando à esmo, na esperança de que ao me perder, eu me encontre.
Não consigo
esquecer a música e, quando canto, lembro-me de onde nos conhecíamos. Lembro-me
de porque a procurava. Lembro-me de seu nome. Me arrependo de algum dia ter
tido a ilusão de que a esqueceria.
Quando canto
aquela melodia bem baixinho, acho que ela triste. Mas quando canto com todos
meus pulmões percebo que ela é alegre. Cantar alto atrapalha a festa deles e deixa
bem claro que estou indo embora para não voltar mais.
Honestamente,
que se foda a festa deles.
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