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Destaques

Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

CARTA PARA CALÍOPE

 



20, 30, 40 minutos de silêncio total naquele ponto de ônibus. Total não...  Ao fundo, ainda ecoava o som do lugar maldito que eu havia deixado há pouco.

 O barulho, no entanto, apesar de ter uma falta de senso artístico notável, não me incomodava. Na minha cabeça havia silêncio.  Uma paz sufocante e paradoxalmente aliviante.

A frota de ônibus é reduzida durante a madrugada, mas minha demora por ali não era devido à ausência de veículos, já haviam passado alguns que podiam me levar pra casa, mas simplesmente não embarquei. Não sei ao certo porque.

A voz dela quebra o silêncio cantarolando algo desconexo que não consigo identificar como nenhuma canção que eu conheça.

Não sei quando ela chegou, nem mesmo se já estava ali quando cheguei. O cantarolar, por outro lado, com certeza, havia começado naquele momento. Impossível não dar atenção àquela sinfonia.

Ela cessa seu canto e se dirige a mim:

— Tem fogo?

— Não, eu não fumo.

— Por quê?

— Sei lá, eu só não fumo.

— Desconfio disso. Ninguém é neutro em relação ao cigarro. Ou você ama o cigarro e sua tribo de fumantes descolados ou você odeia aquele tubinho maldito que sempre vem acompanhado de decadentes depressivos. E quem ama fuma, quem não fuma, por consequência, odeia.

— Eu não me encaixo em nenhuma das suas categorias. Não fumo, mas não odeio os fumantes, pelo contrário, eu tenho um tremendo respeito por muitos deles, a Anna Karina, o Godard, o Júlio Cortázar, a Clarice Lispector, o  Giles Deleuze e a Annie Ernaux foram fumantes notórios, por exemplo. O fumante tem uma aura estilosa. Não aquele estilo plástico que a indústria tabagista vendeu pras pessoas, mas um estilo irreverente, rebelde e romanticamente melancólico. Como os suicidas.

— Ótimo argumento — ela diz sacando um Zippo do próprio bolso — Mas você se encaixa sim em uma das categorias. Você é um fumante. Não um fumante consumado, um fumante metafísico talvez. O outro grupo não entenderia o cigarro como você. O outro grupo esquece que a Anna Karina fumava.

De maneira sincera, mas com um sorriso condescendente e irônico no rosto ela muda de assunto:

— Eu sei que você não se lembra de mim, e não tem problema.

— Não lembro mesmo. Nunca te vi na vida.

— Eu sei. Mas você me conhece. Você me procura. Eu te conheço.

Pausa.

Ela traga o cigarro e desconversa:

— Desde que você tá aqui já passaram todos os ônibus que param nesse ponto. Tá esperando alguém ou ainda não se deu conta de que tá no ponto errado?

Lembro-me de não saber em que momento ela chegou naquele ponto de ônibus.

— Não, eu tô no ponto certo e não espero encontrar ninguém, não. Eu só queria sair o mais rápido possível do lugar em que eu estava, mas ainda não estou com vontade de ir pra casa, quero aproveitar mais um pouco esse limbo, essa ausência.

— Por que você vai pra casa?

— Porque eu não tenho nenhum outro lugar pra ir.

— Não tem mesmo?

— Não. Sei voltar para os lugares de onde vim, mas a partir desse ponto, não conheço nada, estou completamente perdido.

Pausa.

Eu recomeço:

— E você? Não entrou em nenhum dos ônibus por quê?

— Porque o meu ônibus ainda não passou.

— Mas não passaram todos que param nesse ponto?

— Menos o meu. O meu é especial.

— Pra onde ele vai?

— Não sei, gostaria de descobrir, mas acho que seria melhor se eu não soubesse.

— Por que entrar num ônibus sem saber o destino?

— É melhor que ficar parado, e é melhor do que voltar pra monotonia dos velhos destinos.

— Mas nada garante que vai ser um lugar melhor.

— É, mas vai ser novo, e uma hora eu acabo acertando. Eu ando por andar, se chegar em algum destino bom, ótimo, se não, não tem problema.

— Bom argumento.

Pausa.

Ela recomeça:

— Por que você foi embora do lugar onde estava?

— Não fazia sentido estar lá. Eu não entendo aquelas pessoas. Não quero entender. Aguentei o quanto dava aquelas conversas natimortas e aquela música terrível. Saí à francesa. Prefiro ficar aqui escutando aquela melodia triste que você estava cantarolando.

— Não era uma melodia triste. E você deveria ter feito que notassem sua saída.

— Ia acabar atrapalhando a música, a festa deles.

— Que se foda a festa deles.

Sorrio de leve:

— Que se foda a festa deles.

Um ônibus para. Ela começa a embarcar. À porta, vira o rosto para mim e diz:

— Já passou da hora de você começar a cantarolar A Melodia. Não há mais tempo para ficar esperando sem embarcar. Não há mais tempo para visitar os velhos destinos.

A porta se fecha.

Faço o sinal para o próximo ônibus. Embarco sem ler o letreiro.

Desde então ando à esmo, na esperança de que ao me perder, eu me encontre.

Não consigo esquecer a música e, quando canto, lembro-me de onde nos conhecíamos. Lembro-me de porque a procurava. Lembro-me de seu nome. Me arrependo de algum dia ter tido a ilusão de que a esqueceria.

Quando canto aquela melodia bem baixinho, acho que ela triste. Mas quando canto com todos meus pulmões percebo que ela é alegre. Cantar alto atrapalha a festa deles e deixa bem claro que estou indo embora para não voltar mais.

Honestamente, que se foda a festa deles.

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