Destaques
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
MINHA MELANCOLIA PEQUENO BURGUESA
Tempos atrás, descobri, por acaso, em uma loja de discos usados, o álbum “You Must Believe in Spring” do Bill Evans. Sabia vagamente da reputação do pianista como um dos maiores nomes do gênero, o que, pra mim, pouco importava já que nunca entendi muito de jazz. Eu gosto de jazz, sempre gostei, mas nunca me senti possuidor do conhecimento técnico necessário para apreciar as músicas com o carinho que elas merecem.
O jazz é um
gênero técnico, mas pouco engessado. Encontra-se beleza no caos, no inesperado.
A improvisação e o diálogo entre os instrumentistas são a tradução musical da
relação entre artista e público que, a meu ver, se resume na incapacidade de
entender plenamente tudo o que o outro pensa aliada à identificação empática
primitiva, a vontade de entender.
Há o
reconhecimento da impossibilidade de indivíduos diferentes transmitirem o subjetivo
da mesma maneira, e um entendimento da beleza da interpretação e da
ressignificação que ainda preservam um sentido primário, empático e sensível da
coisa. Não há pretensão de manutenção, concordância plena, mas de mutação
constante, mantendo apenas o ontológico da arte: o sensível, o belo, o tocante.
Eu, no
entanto, nunca me dediquei o suficiente ao gênero para conseguir identificar e
apreciar todas as dinâmicas artísticas em jogo durante uma performance. O jazz
apenas me trazia o sentimento daquelas noites em que, à olho nu, percebemos a
lua brilhar de maneira extraordinária, mas ao tentar fotografá-la reduzimos sua
grandiosidade e beleza, restando apenas um simulacro daquilo que os olhos
amaram. Imagens de forma alguma desprovidas de beleza, mas sempre indignas da
elegância de sua modelo. Nunca deixei de apreciar e admirar o gênero, mas não o
escutava com muita regularidade, deixava-o para amantes mais preparados.
Apesar
disso, fiquei fascinado quando vi a capa do álbum de Evans, a cena de uma
floresta chuvosa, povoada por galhos secos e sem frutos seguida de um título
enigmático: “You Must Believe in Spring”, “Você deve acreditar na primavera”.
Fiquei tocado, havia uma energia melancólica e verdadeira, que me instigou a
comprar o disco. Mesmo que eu não entendesse a dinâmica musical de maneira
técnica, senti que, se apenas a capa e o título me provocavam tal reflexão, eu
deveria tentar, mesmo sem possuir as objetivas adequadas, capturar aquela lua.
“You Must
Believe in Spring” é marcado por uma angústia poderosa que não faz questão de
lhe convencer da profundidade daquela tristeza. O piano de Evans chora,
lamenta, confessa e suplica por perdão. É fúnebre, mas de forma tragicamente
pessoal e interna. Nem hoje, nem na época em que ouvi pela primeira vez, posso
afirmar entender todas as minúcias técnicas e subjetivas que marcam o disco, mas o piano
de Evans é sublime, transcendental, ignora a etapa da cognição e transmite de
forma pura a matéria de toda a arte: emoção.
Bill Evans
dedica músicas a seu irmão e a Ellaine, sua companheira de longa data, ambos
vítimas de suicídio. Henry Evans lutava contra a esquizofrenia, já Ellaine atira-se
contra um trem após Evans terminar seu relacionamento com ela. Não sabia de
nada disso quando escutei o álbum pela primeira vez. Não conhecia a história de
Evans. Mas chorei copiosamente. Chorei empaticamente porque, à minha maneira,
completamente diversa da do pianista, eu também conhecia a tristeza e entendia
a maior tragédia da performance de Evans: “Você deve acreditar na primavera” -
Uma súplica pela esperança ilógica na miséria da alma humana. Uma busca por
frutos em uma floresta retorcida, arriscando ser molhado pela chuva, mesmo que
haja completa certeza da esterilidade das árvores.
Não consigo
e nem quero evitar. Choro. Não entendo o entrelaçamento das notas dos diferentes
instrumentos, não consigo escutar cada movimento, cada pergunta seguida de
resposta, mas choro.
Eu choro
com certa frequência, mas não sei ao certo o que me causa o choro. Não é
incomum que eu derrube lágrimas sem saber o porquê. Suponho que faça sentido.
Saber é razão, chorar, por outro lado, é a expressão máxima da emoção. A
concretização líquida de um conceito tão abstrato quanto a tristeza.
Talvez
tentar compreender por que choro seja um exercício inútil, mas não consigo evitar
por causa das particularidades dos motivos. Dos meus motivos. Por mais que eu
tenha a sensibilidade para me padecer pelo sofrimento do artista, me falta a
matéria-prima para lançar meus esforços na exploração do profundamente pessoal
de indivíduos muito mais interessantes e sensíveis que eu. Me limito a tentar
fotografar uma modelo mais condizente com as objetivas que possuo. Prefiro focar
meus esforços à exploração de um terreno acessível para mim. Peregrino apenas
pela minha própria (i)lucidez e comum anormalidade.
A minha
vida não me faz chorar. Faz muito tempo desde a última vez que chorei por algo
que aconteceu na minha vida. Não afirmo aqui que não aconteceram coisas na
minha vida que me entristecem profundamente, só não lembro de ter chorado,
ultimamente, por causa delas.
Admito que,
no geral, minha vida não me dá muitos motivos para tristeza. Tenho uma vida
confortável, aprecio as pessoas ao meu redor e sei que elas me apreciam também.
Tenho responsabilidades, mas tempo livre o suficiente para não ficar
sobrecarregado. Consigo comprar as coisas que preciso, não passo necessidades
nem muitas vontades, mas sinto uma melancolia primitiva, sem origem de ser, sem
justificativas, sensível ao extremo. Os momentos mais tristes da minha vida não
me fizeram chorar como choro pelas pequenas melancolias. Não às entendo, mas
choro.
Outro
motivo frequente para as minhas lágrimas é a arte.
Quando
visitei o Centro Georges Pompidou em Paris chorei muito verdadeiramente quando
vi a pintura “New York City” do Mondrian.
“New York
City” não é uma pintura triste. Mondrian traduz nela o ritmo da metrópole, a
efervescência cultural que ocorria na cidade numa época de certo otimismo com o
novo e com a superação do passado, sobretudo a superação da guerra e do
fascismo. Penso que justamente por isso fiquei emocionado.
Mondrian
transmite uma alegria contagiante, uma catarse sensorial com linhas retas e coloridas
sobre um fundo branco. É emoção pura. É fazer com que “o intelecto deixe de
atrapalhar a intuição”. A abstração nos deixa com arte, apenas arte, sem espaço
para distrações.
Chorei
quando vi diante de mim “New York City” porque vi ali a expressão mais sincera
da alma humana: a busca pela verdade, pela beleza transcendental, metafísica e
divina.
Bill Evans
e Mondrian me fazem chorar porque vejo neles a verdade. A verdade do mundo
abstrato, do verdadeiro mundo. A verdade da beleza, que é revelada pela alegria
catártica ou pelos lamentos sofridos.
A beleza
está na esperança de acreditar na primavera. Buscar o abstrato é tentar superar
as árvores retorcidas do real, mesmo sabendo que o físico jamais será
metafísico. Abstrair é acreditar na primavera.
Parte de
mim também chora um lamento egoísta e pretencioso. Choro porque penso que se
tivesse me dedicado ao que realmente importa, poderia entender melhor essa
beleza transcendente. Talvez parte de mim acredite que, em outra vida, eu poderia
ter me dedicado à pintura, poderia ter me dedicado ao piano e feito algo belo
com minhas mãos, com minha alma, com minha humanidade, mas não o fiz.
Eu entendi
primitivamente aquela beleza, mas se tivesse me dado as ferramentas físicas,
concretas poderia ter me utilizado direito do potencial da minha alma. Poderia
ter aprendido o piano para tocar um jazz que me libertasse dessa melancolia sem
razão de ser ou, pelo menos, me permitisse transmutá-la em emoção pura,
abstrata, artística. Poderia ter feito desse horror do real algo belo, mas não
o fiz.
Sei, no
entanto, que não choro por não ter me tornado um pianista. O motivo de eu
chorar é o motivo de eu não ter me tornado um pianista. Choro pelo mesmo motivo
que o piano de Bill Evans.
Choro
porque quero acreditar na superação do sofrimento, mas não sei se consigo.
Choro porque não sei se sou suficientemente esperançoso. Choro porque não tenho
certeza de que no fim de tudo a abstração nos salvará e restará apenas o real e
belo.
Choro por
“New York City”.
Choro por
“You Must Believe in Spring”.
Choro
porque sei que devo acreditar na primavera, mas não sei se acredito.
Sei que
tento.
Juro que
tento.
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Postagens mais visitadas
ESTE ERA UM TEXTO SOBRE TRENS
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
O DEFUNTO DA AVENIDA SÃO JOÃO
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Comentários
Postar um comentário