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Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

MINHA MELANCOLIA PEQUENO BURGUESA

 


Tempos atrás, descobri, por acaso, em uma loja de discos usados, o álbum “You Must Believe in Spring” do Bill Evans. Sabia vagamente da reputação do pianista como um dos maiores nomes do gênero, o que, pra mim, pouco importava já que nunca entendi muito de jazz. Eu gosto de jazz, sempre gostei, mas nunca me senti possuidor do conhecimento técnico necessário para apreciar as músicas com o carinho que elas merecem.

O jazz é um gênero técnico, mas pouco engessado. Encontra-se beleza no caos, no inesperado. A improvisação e o diálogo entre os instrumentistas são a tradução musical da relação entre artista e público que, a meu ver, se resume na incapacidade de entender plenamente tudo o que o outro pensa aliada à identificação empática primitiva, a vontade de entender.

Há o reconhecimento da impossibilidade de indivíduos diferentes transmitirem o subjetivo da mesma maneira, e um entendimento da beleza da interpretação e da ressignificação que ainda preservam um sentido primário, empático e sensível da coisa. Não há pretensão de manutenção, concordância plena, mas de mutação constante, mantendo apenas o ontológico da arte: o sensível, o belo, o tocante.

Eu, no entanto, nunca me dediquei o suficiente ao gênero para conseguir identificar e apreciar todas as dinâmicas artísticas em jogo durante uma performance. O jazz apenas me trazia o sentimento daquelas noites em que, à olho nu, percebemos a lua brilhar de maneira extraordinária, mas ao tentar fotografá-la reduzimos sua grandiosidade e beleza, restando apenas um simulacro daquilo que os olhos amaram. Imagens de forma alguma desprovidas de beleza, mas sempre indignas da elegância de sua modelo. Nunca deixei de apreciar e admirar o gênero, mas não o escutava com muita regularidade, deixava-o para amantes mais preparados.

Apesar disso, fiquei fascinado quando vi a capa do álbum de Evans, a cena de uma floresta chuvosa, povoada por galhos secos e sem frutos seguida de um título enigmático: “You Must Believe in Spring”, “Você deve acreditar na primavera”. Fiquei tocado, havia uma energia melancólica e verdadeira, que me instigou a comprar o disco. Mesmo que eu não entendesse a dinâmica musical de maneira técnica, senti que, se apenas a capa e o título me provocavam tal reflexão, eu deveria tentar, mesmo sem possuir as objetivas adequadas, capturar aquela lua.

“You Must Believe in Spring” é marcado por uma angústia poderosa que não faz questão de lhe convencer da profundidade daquela tristeza. O piano de Evans chora, lamenta, confessa e suplica por perdão. É fúnebre, mas de forma tragicamente pessoal e interna. Nem hoje, nem na época em que ouvi pela primeira vez, posso afirmar entender todas as minúcias técnicas  e subjetivas que marcam o disco, mas o piano de Evans é sublime, transcendental, ignora a etapa da cognição e transmite de forma pura a matéria de toda a arte: emoção.

Bill Evans dedica músicas a seu irmão e a Ellaine, sua companheira de longa data, ambos vítimas de suicídio. Henry Evans lutava contra a esquizofrenia, já Ellaine atira-se contra um trem após Evans terminar seu relacionamento com ela. Não sabia de nada disso quando escutei o álbum pela primeira vez. Não conhecia a história de Evans. Mas chorei copiosamente. Chorei empaticamente porque, à minha maneira, completamente diversa da do pianista, eu também conhecia a tristeza e entendia a maior tragédia da performance de Evans: “Você deve acreditar na primavera” - Uma súplica pela esperança ilógica na miséria da alma humana. Uma busca por frutos em uma floresta retorcida, arriscando ser molhado pela chuva, mesmo que haja completa certeza da esterilidade das árvores.

Não consigo e nem quero evitar. Choro. Não entendo o entrelaçamento das notas dos diferentes instrumentos, não consigo escutar cada movimento, cada pergunta seguida de resposta, mas choro.

Eu choro com certa frequência, mas não sei ao certo o que me causa o choro. Não é incomum que eu derrube lágrimas sem saber o porquê. Suponho que faça sentido. Saber é razão, chorar, por outro lado, é a expressão máxima da emoção. A concretização líquida de um conceito tão abstrato quanto a tristeza.

Talvez tentar compreender por que choro seja um exercício inútil, mas não consigo evitar por causa das particularidades dos motivos. Dos meus motivos. Por mais que eu tenha a sensibilidade para me padecer pelo sofrimento do artista, me falta a matéria-prima para lançar meus esforços na exploração do profundamente pessoal de indivíduos muito mais interessantes e sensíveis que eu. Me limito a tentar fotografar uma modelo mais condizente com as objetivas que possuo. Prefiro focar meus esforços à exploração de um terreno acessível para mim. Peregrino apenas pela minha própria (i)lucidez e comum anormalidade.

A minha vida não me faz chorar. Faz muito tempo desde a última vez que chorei por algo que aconteceu na minha vida. Não afirmo aqui que não aconteceram coisas na minha vida que me entristecem profundamente, só não lembro de ter chorado, ultimamente, por causa delas.

Admito que, no geral, minha vida não me dá muitos motivos para tristeza. Tenho uma vida confortável, aprecio as pessoas ao meu redor e sei que elas me apreciam também. Tenho responsabilidades, mas tempo livre o suficiente para não ficar sobrecarregado. Consigo comprar as coisas que preciso, não passo necessidades nem muitas vontades, mas sinto uma melancolia primitiva, sem origem de ser, sem justificativas, sensível ao extremo. Os momentos mais tristes da minha vida não me fizeram chorar como choro pelas pequenas melancolias. Não às entendo, mas choro.

Outro motivo frequente para as minhas lágrimas é a arte.

Quando visitei o Centro Georges Pompidou em Paris chorei muito verdadeiramente quando vi a pintura “New York City” do Mondrian.

“New York City” não é uma pintura triste. Mondrian traduz nela o ritmo da metrópole, a efervescência cultural que ocorria na cidade numa época de certo otimismo com o novo e com a superação do passado, sobretudo a superação da guerra e do fascismo. Penso que justamente por isso fiquei emocionado.

Mondrian transmite uma alegria contagiante, uma catarse sensorial com linhas retas e coloridas sobre um fundo branco. É emoção pura. É fazer com que “o intelecto deixe de atrapalhar a intuição”. A abstração nos deixa com arte, apenas arte, sem espaço para distrações.

Chorei quando vi diante de mim “New York City” porque vi ali a expressão mais sincera da alma humana: a busca pela verdade, pela beleza transcendental, metafísica e divina.

Bill Evans e Mondrian me fazem chorar porque vejo neles a verdade. A verdade do mundo abstrato, do verdadeiro mundo. A verdade da beleza, que é revelada pela alegria catártica ou pelos lamentos sofridos.

A beleza está na esperança de acreditar na primavera. Buscar o abstrato é tentar superar as árvores retorcidas do real, mesmo sabendo que o físico jamais será metafísico. Abstrair é acreditar na primavera.

Parte de mim também chora um lamento egoísta e pretencioso. Choro porque penso que se tivesse me dedicado ao que realmente importa, poderia entender melhor essa beleza transcendente. Talvez parte de mim acredite que, em outra vida, eu poderia ter me dedicado à pintura, poderia ter me dedicado ao piano e feito algo belo com minhas mãos, com minha alma, com minha humanidade, mas não o fiz.

Eu entendi primitivamente aquela beleza, mas se tivesse me dado as ferramentas físicas, concretas poderia ter me utilizado direito do potencial da minha alma. Poderia ter aprendido o piano para tocar um jazz que me libertasse dessa melancolia sem razão de ser ou, pelo menos, me permitisse transmutá-la em emoção pura, abstrata, artística. Poderia ter feito desse horror do real algo belo, mas não o fiz.

Sei, no entanto, que não choro por não ter me tornado um pianista. O motivo de eu chorar é o motivo de eu não ter me tornado um pianista. Choro pelo mesmo motivo que o piano de Bill Evans.

Choro porque quero acreditar na superação do sofrimento, mas não sei se consigo. Choro porque não sei se sou suficientemente esperançoso. Choro porque não tenho certeza de que no fim de tudo a abstração nos salvará e restará apenas o real e belo.

Choro por “New York City”.

Choro por “You Must Believe in Spring”.

Choro porque sei que devo acreditar na primavera, mas não sei se acredito.

Sei que tento.

Juro que tento.


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