Pular para o conteúdo principal

Destaques

Segredos Ditos à Luz do Crepúsculo

O vento acariciava suas crinas cor-de-avelã enquanto tamboreiavam a terra com seus cascos. Seus olhos sombrios e brutos refletiam o róseo do horizonte, que era interrompido apenas pelo dourado do sol escapando por dentre as nuvens. Dentes-de-leão dançavam ao vento e grudavam em suas pelagens. Não sentiam fragrâncias, pois suas narinas apenas captavam o frio do inverno que se aproximava. Corriam em direção ao que restava de sol. Eram, como é próprio de sua natureza, livres. Distante dali, restava o cavaleiro. O homem portava uma longa barba e utilizava vestes coloridas e suntuosas que, na sociedade dos homens, indicavam uma posição de estima e respeito. Estas, no entanto, estavam gastas, desbotadas e batidas - era evidente que havia muito tempo desde a última vez em que o cavaleiro adentrara os grandes salões que reconheciam o significado dos seus trajes. Salões estes que já haviam deixado a materialidade e residiam agora apenas em memórias e delírios. Sentado aos pés da fogueir...

CHE GUEVARA: A CALÍOPE DO SÉCULO XX

 


PRELÚDIO: AQUELE HOMEM DE BOINA OU A COMPLEXIDADE DOS HOMENS NOTÁVEIS

Nenhuma figura política do século XX é tão polarizante quanto Che Guevara. O líder revolucionário argentino é comparável a Cristo para uns e cria do próprio capeta para outros, contudo, é inegável que o homem era extremamente notável. Poucas pessoas na história tiveram trajetórias tão intensas quanto a de Guevara que, durante seus curtos 39 anos de vida, viajou pela América Latina para conhecer suas mazelas; se formou médico; tratou de leprosos; foi peça fundamental da ação de guerrilha mais importante do século; não se acomodou com cargos e continuou em busca de causas revolucionárias justas até ser assassinado pela CIA na Bolívia.

É difícil falar de Che Guevara pois os processos históricos transformaram-no em algo maior que ele mesmo: uma imensa gama de símbolos e diferentes interpretações de sua ideologia. Tais processos são vitais para a formação da figura que representa e inspira determinados valores de justiça, igualdade e rebelião, mas infelizmente também podem dar início a demonização e desumanização do revolucionário, afastando-o de suas motivações e ideais e encarando-o apenas por suas ações, resultando numa visão simplista de um dos homens mais complexos da História Contemporânea.

Apesar da dificuldade, é óbvio que não faltam obras retratando Guevara, tanto biografias e textos acadêmicos quanto obras artísticas das mais variadas mídias. Che é uma figura icônica e plural, o que leva a um fascínio artístico na busca por interpretar sua trajetória. Nas 3 obras de que vou tratar ele é mostrado como homem, herói e por fim como símbolo.

 

CAPÍTULO 1: ERNESTO RAFAEL GUEVARA DE LA SERNA OU O BEATNIK TROPICAL

Diários de Motocicleta, do diretor Walter Salles, retrata o estudante de medicina Ernesto Guevara e seu amigo Alberto Granado em uma viagem de moto pela América Latina. A viagem dos dois argentinos é motivada pelas maiores ânsias da juventude: eles querem ampliar seus horizontes conhecendo seu continente sem nenhum dos filtros e lapidações da mídia e dos livros. A roadtrip de dar inveja em Jack Kerouac foi um ponto de virada para Guevara, ele já tinha certa preocupação social, tanto que a lepra era o foco de sua atuação médica. Contudo, a constatação de que a pobreza e as diferenças sociais na América conseguiam ser mais severas do que a pior de suas expectativas, desperta indignação e vontade de mudança, valores pelos quais ele estaria disposto a morrer.

O filme, baseado nos diários e relatos da própria dupla, pode ser encarado como um estudo sobre a formação do caráter e dos valores do Che. Ernesto Guevara ainda não é o herói revolucionário, porém já demonstra os traços e características que o tornaram tão icônico. A viagem é extremamente importante na construção de Che como um símbolo de rebeldia juvenil. Guevara é esse símbolo pois é fácil identificar-se com sua trajetória: ele era apenas um jovem que desejava ampliar seus horizontes e que acreditava na mudança e na luta por um mundo melhor.

Guevara é símbolo para tantos movimentos de rebeldia pois ele era quase um beatnik: Era rebelde, questionador e ansiava por uma realidade mais livre e disposta a romper com visões de mundo retrógradas. Tudo isso é atenuado pelo fato de que Ernesto Guevara não se limitou a uma filosofia questionadora, ele dedicou sua vida a um rompimento concreto de padrões e, como veremos a seguir, poucos indivíduos do século XX enfrentaram e abalaram tanto o status quo quanto o comandante revolucionário Che Guevara.

 

CAPÍTULO 2: COMANDANTE ERNESTO “CHE” GUEVARA OU “HAY QUE ENDURECERSE PERO SIN PERDER LA TERNURA JAMÁS”

 

Em 1967 Che Guevara foi executado pela CIA na Bolívia. Poucos meses depois seria publicado em sua terra natal o quadrinho “Vida del Che” (lançado aqui no Brasil com o nome “Che: os últimos dias de um Herói” pela editora Conrad, e mais recentemente como “Che” pela Comix Zone. A edição que li foi da editora portuguesa Lenoir que lançou a obra com o nome “A vida de Che”). A obra, produzida com um intervalo de menos de um ano da morte de Guevara reunia os maiores nomes dos quadrinhos argentinos: o roteirista Héctor Oesterheld e os desenhistas Alberto Breccia e seu filho Enrique Breccia. A narrativa da obra é revolucionária para os quadrinhos da época: intercala momentos dos últimos dias da vida de Guevara na Bolívia com momentos de sua história, desde a infância até a vitória na guerrilha cubana. A distinção das linhas narrativas é feita pela arte: a guerrilha na Bolívia é desenhada por Enrique e o passado do Che é desenhado por Alberto.

Nesta obra Che Guevara assume o papel do herói. O roteiro retrata tanto as ações quanto os valores admiráveis do comandante. O Ernesto “Che” Guevara de Oesterheld é um homem inquieto, que não consegue ser omisso quando confrontado com a desigualdade. É rebelde tanto pelo seu envolvimento nas guerrilhas quanto na recusa em se estabelecer e deixar os atos revolucionários após a vitória em Cuba. É, por fim, corajoso e comprometido com sua causa sacrificando o convívio com a família e, posteriormente, sua vida para lutar pelos seus ideais.

A morte do revolucionário argentino ainda era um fato recente na época e isso é perceptível na obra, principalmente nas partes que se passam na Bolívia, nelas o livro tem um tom de melancolia e revolta com as circunstâncias da morte do Che – covardemente executado pela CIA, em mais uma das inúmeras demonstrações do imperialismo americano na história da América Latina.

A trajetória de Che se conclui como uma típica narrativa de heroísmo, ele é morto pela mão de covardes sem trair seus valores em momento algum. A morte heroica do comandante é parte integral da sua transformação em um símbolo, inspiração e mártir para movimentos vindouros.

É importante citar que, assim como seu herói, Héctor Oesterheld também foi morto pelas mãos de um regime covarde por defender ideias de igualdade que ameaçavam àqueles no poder. Oesterheld foi sequestrado pela ditadura argentina por fazer parte de um grupo que se opunha ao sistema. Alguns também consideram que a obra sobre Che Guevara teve papel na decisão do regime de caçar o roteirista. Pode-se dizer que, assim como o protagonista do livro discutido no próximo capítulo, Héctor Oesterheld morreu pelo Che.

CAPÍTULO 3: CHE GUEVARA OU A RECEITA PARA UM REVOLUCIONÁRIO

O sucesso inesperado de um grupo incialmente em desvantagem na revolução cubana fez daqueles jovens latinos, rockstars. A imagem de luta por igualdade, irreverência e principalmente da força do poder popular, foram inspiração de toda uma geração de revolucionários, jovens, filósofos e políticos pelo mundo.

 Apesar de, na história recente, já existirem outros acontecimentos similares, nenhum obteve tamanho valor simbólico quanto a luta cubana, principalmente pelo contexto histórico em que ela está inserida: uma época de imperialismo, expansão da mídia e, principalmente, da gênese da mentalidade e imagem de mudança ligada a juventude.

A revolução cubana serviu de inspiração para diversos movimentos na América Latina por se tornar prova de que a luta não era em vão.

É nesse contexto que se insere a HQ “Morrer Pelo Che” de Pablo Roy Leguisamo, Marcos Vergara e Caio di Lorenzo, lançada aqui no Brasil pela editora Quadriculando.

A trama inspirada em fatos reais descreve a ida de Che Guevara para o Uruguai em 1961, porém, ao contrário das duas outras obras de que tratei, Che tem um papel secundário. A narrativa acompanha um professor que leciona na universidade em que Guevara discursará. A vida cotidiana do personagem é abalada pelo simples fato do revolucionário estar visitando o país: a movimentação dos grupos de esquerda com os quais tem contato, a polarização e as demonstrações de apoio e desaprovação dos valores revolucionários permeiam as conversas na cidade.

A história tem seu clímax com Che Guevara discursando na universidade sobre os valores da revolução e sobre a importância do engajamento popular na luta. O discurso é recebido com aplausos e comemorações, entretanto, ao sair do evento, iniciam-se disparos direcionados ao revolucionário que consegue escapar sem grandes danos. Porém, o protagonista da obra acaba por receber um dos tiros e, de maneira poética, morre pelo Che.

O quadrinho demonstra com maestria a construção de Che Guevara como um símbolo revolucionário que, mesmo em vida, era muito maior que o homem Ernesto Guevara. O comandante inspira movimentos e pessoas, dos quais nunca ouviu falar, a darem suas vidas por causas e ideais infinitamente maiores que seus feitos em vida. A imagem de Guevara é cultuada até hoje pela importância simbológica que ela ganhou, uma foto do argentino não invoca somente a revolução cubana, mas ideias de socialismo, igualdade, luta contra o imperialismo e ação revolucionária.

 

EPÍLOGO: ADEUS COMANDANTE E OBRIGADO PELAS CAMISETAS

Seja Ernesto ou seja Che, o nome de Guevara ainda vai permear discussões políticas, livros, quadrinhos e filmes e, mesmo assim, não se esgotarão as maneiras de interpretar, julgar e conhecer o jovem doutor argentino. Para alguns ele é uma inspiração da busca da justiça, mas talvez ele esteja mais para um rockstar, representando o poder de mudança das novas gerações e a rebeldia contra os poderosos. Para a ideologia distorcida de outros, Guevara é o próprio diabo e o cúmulo da maldade. E ainda há quem o veja como uma figura anti-heroica análoga a Lúcifer, mas para esses o anjo caído é também símbolo da disputa contra o autoritarismo. Alguns carregarão sua face como símbolo de protesto, enquanto outros vestirão suas camisetas sem nem mesmo saber quem foi o homem. Che sofre a sina dos notáveis, ele é muito maior que ele mesmo.



Me segue nas minhas redes sociais:

Instagram

Twitter

 

Comentários

Postagens mais visitadas